Engrenagem do ódio
Com ficção-científica, Renata Pinheiro aborda o uso de tecnologias para promover o fanatismo e a manipulação ideológica das massas.
Não faz muito tempo que vimos uma obra cinematográfica traçar comentários interessantes sobre a relação do homem com máquinas. Titane de Julia Ducornau, vencedor da edição de 2021 de Cannes recém-lançado no Mubi, apresenta um body horror curioso a partir da jornada de uma jovem que sofre um acidente de carro quando criança e se transforma em uma espécie de ciborgue após um procedimento cirúrgico. Carro Rei possui paralelos com este longa francês, apresentando até algumas cenas de sexo entre humanos e automóveis, mas fica evidente pelo seu contexto de realização e pelo local onde se passa sua história que a realizadora quer estabelecer uma crítica cirúrgica sobre os caminhos que a sociedade brasileira tem traçado nos últimos anos com o governo de Jair Bolsonaro.
Aquilo que inicialmente é chamado de resistência, logo ganha ares de culto liderado pelo Carro Rei, tendo o mecânico Zé Macaco como ponte para a execução de um plano de manipulação. Aqui, há evidentes paralelos com a relação estabelecida entre bolsonaristas e o atual presidente brasileiro, com direito até ao personagem de Matheus Nachtergaele bradando em dado momento do filme: "Caruaru acima de todos!". Além disso, está presente no filme uma esquisita relação que se cria entre o homem e a tecnologia, oscilando entre a situação de humanos que são governados por essa macroestrutura predatória e imperialista da tecnologia e os momentos em que essas ferramentas são usadas para a manipulação das massas por meio de deturpações da realidade. Tudo isso não é muito diferente do uso que grupos políticos têm feito do Twitter e do Whatsapp para disseminar fake news, parte fundamental da estratégia de ascensão da extrema direito em muitos países, inclusive o Brasil, mas também da estranha relação que muitos deles possuem com essas empresas e os CEOs por trás de suas políticas.
Todos esses paralelos entre ficção e realidade são construídos de forma instigante e envolvente por Renata Pinheiro na tela. A diretora imprime um visual interessante para a obra tornando Carro Rei uma espécie de representante de um sertão-futurismo, toda uma tecnologia possível à realidade de Caruaru. Automóveis retro-futuristas que circulam pelas vielas simples do interior de Pernambuco com seus seguidores humanos convertidos em primatas trajados por roupões azul e amarelo. Há escolhas estéticas fascinantes ao longo da narrativa.
Parte do bom resultado visto na tela em Carro Rei se dá também pela performance enérgica e comprometida (como de costume) de Matheus Nachtergaele. O ator transforma o seu Zé Macaco em um símio, empenhando-se em trazer para a expressão corporal do personagem o andar de um primata além de emitir, sempre que possível, sons que nos remetem ao animal. A atuação de Nachtergaele assume contornos ainda mais intensos quando seu personagem entra em uma espiral de megalomania, fazendo o ator exibir tudo isso não só com uma postura corporal que passa a ser ameaçadora, mas por um olhar que exprime puro fanatismo. Matheus faz o equivalente que Andy Serkis fez na trilogia Planeta dos Macacos, mas ainda melhor, sem CGI. Aliás, o próprio longa tem um paralelo inegável com os filmes da série e até com O Exterminador do Futuro no cunho filosófico e pessimista das suas reflexões sobre as relações do homem com o nosso planeta e para onde a humanidade está caminhando da forma como tem se comportado.
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