Crítica: Tudo em todo lugar ao mesmo tempo

 


Poética da dispersão

Um dos maiores sucessos comerciais e de crítica da A24, filme de Daniel Kwan e Daniel Scheinert é marcado por desarranjos. 



Tudo em todo lugar ao mesmo tempo se tornou um fenômeno de popularidade da A24, produtora estadunidense muito bem quista mundo afora pelo seu catálogo autoral, sendo sua melhor bilheteria até aqui. Ao mesmo tempo, o longa de Daniel Kwan e e Daniel Scheinert (ambos de Um Cadáver para Sobreviver) tem ganhado forte adesão de críticos de cinema e da cinefilia e muito já se prospecta sobre suas chances na temporada de premiações estadunidense. Como o longa antecessor da dupla, entretanto, Tudo em todo lugar ao mesmo tempo não é material para todos e, a despeito do culto que já anda se formando em torno da obra, tende também a gerar juízos diametralmente opostos às opiniões incondicionalmente favoráveis. Nos localizamos exatamente neste outro polo de avaliação sobre o filme. 

O longa traz a história de Evelyn Wang, papel de Michelle Yeoh (de O Tigre e o Dragão), uma imigrante chinesa nos EUA proprietária de uma lavanderia. Entre os problemas enfrentados por Evelyn está uma crise iminente no seu casamento, a dificuldade de comunicação com a filha já que ela não aceita a homossexualidade da garota e um desarranjo complicado de se resolver com a receita federal estadunidense. É então que Evelyn descobre o multiverso, podendo acessar habilidades de diversas versões de si e também transitar por realidades paralelas a fim de buscar soluções para as questões mal resolvidas da sua vida. 


Tudo em todo lugar ao mesmo tempo se apoia nesse conceito amplamente utilizado em grandes franquias de super-heróis, já explorado nos quadrinhos mas que agora ganha caráter estandardizado com recentes produções da Marvel e da DC Comics (que em breve parece explorar isso em The Flash): a ideia de multiverso. Isso já funciona para o filme como chamariz de um público que tem consumido em larga escala e com grande aceitação filmes e séries de super-heróis que já abordam o tema. No entanto, o que se vê aqui é o uso desse conceito como muleta para amortecer a dispersão narrativa de um filme que parece funcionar na chave do déficit de atenção, na dificuldade em passar um tempo considerável com seus personagens, de se deixar levar por suas introspecções e assimilar seus dramas... Não há respiro em Tudo em todo lugar ao mesmo tempo

Na mesma medida que o longa busca no melodrama um dos seus sustentáculos para tornar a relação do público com a obra mais íntima, tendo os conflitos de Evelyn com sua família na centralidade da história, os Daniels apresentam uma direção hiperbólica  e vaidosa demais com seus feitos, a ponto de impermeabilizar o envolvimento de fato do espectador com as relações de afeto gradualmente reestabelecidas na tela pela protagonista. A dispersão é tamanha que o longa sequer deixa um dos seus melhores recursos, a interpretação de Michelle Yeoh, de fato brilhar como poderia, tamanha vaidade dos seus cineastas. Quando Michelle acessa de fato as fragilidades de Evelyn e dá uma maior abertura para a sua filha ou para a fiscal da receita interpretada por Jamie Lee Curtis (um desperdício em cena), os Daniels cortam abruptamente esse momento mais intimista da obra para qualquer sorte de artifício em uma realidade paralela. Nada é mais importante no filme (coesão narrativa, a interpretação dos seus atores) do que a necessidade deles frisarem em cada uma das suas sequências como são originais,  cool, geniais, anárquicos, irreverentes etc.  Particularmente, isso soa irritante e, possivelmente, para parcela do público também soará assim.



Tudo em todo lugar ao mesmo tempo tem aquele cacoete do filme que se apresenta sob um verniz de refrescância, descontração e vocação para o diálogo com a cultura pop (o cinema de kung fu é escancaradamente homenageado e até proporciona cenas de luta bem divertidas). No entanto, nada disso está propriamente à serviço de qualquer construção narrativa, nem mesmo do ponto de vista anárquico, surge como uma retórica de insights jogados aleatoriamente na tela que envolvem uma versão de Ratatouille com um guaxinim, uma realidade com personagens que possuem dedos de salsicha e a apresentação de créditos finais no meio da sua projeção. No fundo, tudo isso soa mais como puro artifício. Certo de que muitos discordarão da nossa leitura sobre a obra, é salutar, todavia, que filmes como este existam para estremecer as bases tão "certinhas" da linguagem cinematográfica e proporcionar discussões acaloradas com cisões de juízo como vem proporcionando. Esse ponto favorável de Tudo em todo lugar ao mesmo tempo ninguém consegue negar. 


Avaliação


Título original: Everything Everywhere all at once
Ano: 2022
Duração: 139 minutos
Nos cinemas
Direção: Daniel Kwan e Daniel Scheinert
Roteiro: Daniel Kwan e Daniel Scheinert
Elenco: Michelle Yeoh, Ke Huy Quan, Stephanie Hsu, Jamie Lee Curtis, Jenny Slate, James Hong, Tallie Medel, Harry Shum Jr., Riff Wiff. 

Assista ao trailer:




COMENTÁRIOS

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Chovendo Sapos: Crítica: Tudo em todo lugar ao mesmo tempo
Crítica: Tudo em todo lugar ao mesmo tempo
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