Crítica: Quando chega o Outono

 


Quando chega o Outono é um filme no qual François Ozon coloca sob suspeita a boa fé dos seus personagens principais. Há anos, Michelle Giraud vive longe de Paris em uma casa de campo no interior da França. A relação entre ela e a filha Valérie não é das melhores e isso fica evidente para o espectador quando a moça está de passagem pela casa de Michelle com o filho e acaba sofrendo uma intoxicação pelos cogumelos servidos pela protagonista durante um almoço. Desde então, a relação entre mãe e filha que já não era boa fica ainda pior. 

Paralelamente à conturbada relação com a única filha, Michelle tem uma certa afeição por Vincent, um rapaz, filho da sua melhor amiga. Vincent não tem bons precedentes e é visto com desconfiança por muitos, inclusive por Valérie, em razão de ter cumprido uma pena na prisão. Apesar de tudo, o rapaz consegue refazer sua vida e abrir um bar graças a ajuda de Michelle. Em retribuição a todo esse suporte dado pela amiga da mãe, Vincent tenta intermediar a relação entre Michelle e a filha Valérie, mas as coisas acabam tomando um rumo inesperado. 

Quando chega o Outono é um filme no qual  François Ozon faz questão de deixar lacunas na sua trama. É difícil para o espectador ter um juízo definitivo sobre as intenções dos seus personagens principais. A vida pregressa de Michelle e Vincent acaba sendo inserida no roteiro de Ozon para o cineasta provocar o público e seus personagens, sinalizando como nossos preconceitos são capazes de preencher lacunas narrativas quando não temos certezas sobre as coisas. Assim, em Quando chega o Outono, Ozon é capaz de construir duas histórias diametralmente opostas: de um lado, uma trama de conspirações e assassinatos dissimulados e, do outro, a possibilidade da tragédia engendrada pelo mero acaso, evidenciando como é difícil reconstruir uma imagem diante de decisões do passado que maculam reputações. 

Aparentemente, o cineasta François Ozon acaba não deixando muito claras suas respostas ao final de Quando chega o Outono. O mistério em torno de uma morte que mobiliza parte considerável das ações do filme leva o espectador a elaborar o tempo todo uma trama na qual Michelle é responsável por um ato vil com a ajuda de Vincent. Ozon leva o espectador a essa confabulação e o passado desses personagens é determinante para que o cineasta consiga esse efeito, provocando o juízo do público: até que ponto estamos imunes aos nossos preconceitos na presunção que fazemos de histórias que sequer conhecemos a fundo? Nesse sentido, não existe zona cinzenta nas lacunas que preenchemos na narrativa, ou os protagonistas (Michelle e Vincent) são figuras maquiavélicas ou são vítimas do acaso, quando no final das contas eles podem muito bem ser um pouco de ambos. 

O ponto-chave da dualidade intencional com a qual Ozon desenvolve seus personagens em Quando chega o Outono é esse esforço deliberado do cineasta de dar a todos eles o benefício da dúvida ao invés de uma sentença definitiva. No final das contas, o novo projeto do cineasta é sobre a dúvida e como, fora a nossa própria vivência, não temos total domínio do que existe por trás dos mistérios em torno das situações que nos são apresentadas.

A dúvida põe um holofote no direito que Ozon dá a seus personagens de serem humanos, capazes de virtudes, mas também de faltas graves. É fascinante como ele sinaliza isso desde o princípio com o sermão do padre sobre Maria Madalena na Igreja. Michelle pode ter de fato sido uma péssima mãe no passado e sua filha pode ter razões para odiá-la ou talvez ela está apenas sendo preconceituosa com a mãe, inserindo Valérie também no território da dubiedade. Vincent pode ser um sujeito violento e dissimulado, mas também um rapaz que está buscando uma segunda oportunidade fora da cadeia. A relação entre Michelle e Vincent pode esconder vínculos soturnos ou eles podem ter empatia um pelo outro, a ponto de Michelle até ser omissa e fechar os olhos para algumas ações do rapaz. Nada é muito óbvio na resolução do emaranhado de mistérios de Quando chega o Outono e toda sentença parece precipitada porque assim acaba sendo a vida até que tenhamos uma prova cabal da culpabilidade de algo e isso François Ozon não entrega no seu roteiro, tirando do cineasta e do público essa posição plena de onisciência.  


As possibilidades de interpretação são inúmeras e é impressionante como Ozon costura esse roteiro para que ele consiga permanecer em uma zona de completa nebulosidade. O filme também consegue um bom resultado nesse sentido porque o elenco consegue conferir a esses personagens essa dubiedade nos perfis psicológicos traçados. Nesse quesito, o trabalho de Hélène Vincent merece destaque na construção da protagonista Michelle, encarada pelo público como uma assassina dissimulada ou como uma mulher buscando a todo custo fazer as pazes com o passado e falhando nesse intento por conta de tragédias que tomam conta da sua vida. 

 Em Quando chega o Outono, François Ozon encarrega o público da resolução do mistério de sua trama, uma função que, no modelo clássico (e, por vezes, preguiçoso e excessivamente didático) seria da detetive vivida aqui pela atriz Sophie Guillemin. Como nos seus melhores filmes e de forma potencializada, François Ozon destaca a importância da postura ativa do espectador cinematográfico, colocando o debate como ponto fundamental para fazer a experiência espectatorial de Quando chega o Outono extremamente estimulante e satisfatória.  


Avaliação


Título original: Quand vient l'automne
Ano: 2024
Duração: 102 minutos
Nos cinemas
Direção: François Ozon
Roteiro: François Ozon
Elenco: Hélène Vincent, Pierre Lottin, Ludivine Sagnier, Josiane Balasko, Garlan Erlos, Siphie Guillemin, Paul Beaurepaire, Malik Zidi.  

Assista ao trailer do filme:



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Chovendo Sapos: Crítica: Quando chega o Outono
Crítica: Quando chega o Outono
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