Lançado em 2022 no circuito de festivais, Diálogos com Ruth de Souza chega para um público mais amplo através do catálogo da Netflix após uma breve passagem pelos cinemas brasileiros em maio de 2024, quase cinco anos depois do falecimento da artista. A reverência do filme da cineasta Juliana Vicente a toda a história de Ruth de Souza é mais do que justa. Ruth de Souza é uma das maiores atrizes brasileiras que já existiu, além de ser uma referência muito forte para toda a comunidade de artistas pretos do nosso país. O filme fortalece a importância de Ruth, que, infelizmente, como muitos artistas pretos em nosso país, teve sua relevância e pioneirismo silenciados por uma historiografia racista da nossa cultura.
A partir de visitas constantes que fez à casa de Ruth de Souza para entrevistá-la, Juliana Vicente retoma os momentos mais importantes da trajetória da artista, tornando Diálogos com Ruth de Souza um filme importante como documento histórico da trajetória da sua protagonista, mas também do nosso audiovisual, afinal a biografia da atriz se entrelaça com a própria história do cinema e da televisão brasileira. Intercalando os depoimentos da atriz com imagens do seu arquivo pessoal, seus filmes e algumas dramatizações simbólicas da trajetória da protagonista, o documentário tece um importante relato que frisa o pioneirismo de Ruth de Souza em diversas frentes. Estamos diante de uma artista revolucionária que muitas vezes não tinha pretensão de ser, mas que acabou sendo por sua força representativa e pelas conquistas que conseguiu ao longo da carreira, desafiando preconceitos do público e dos seus colegas de trabalho. Por tudo isso, a história de Ruth de Souza é marcada pelo talento e pela resiliência, enfatiza o filme.
Diálogos com Ruth de Souza contempla diversos momentos emblemáticos e algumas passagens pouco exploradas da vida de Ruth de Souza e também da história de artistas pretos no país. O longa aborda, por exemplo, o Teatro Experimental Negro, um movimento revolucionário nos palcos que deu visibilidade para muitos artistas negros no país e também condições para que eles tivesse uma vida digna com emprego e educação que não tiveram por outras vias. A história do Teatro Experimental Negro contada no documentário também enfatiza o lugar de Ruth de Souza, uma mulher preta, como uma das principais mentoras do projeto, algo que desafiava disputas internas de poder com seus colegas homens.
Além do Teatro Experimental Negro, Diálogos com Ruth de Souza aborda a passagem de Ruth de Souza por Nova York para estudar teatro com uma bolsa do instituto Rockefeller; a repercussão de Sinhá Moça de Tom Payne e Oswaldo Sampaio, filme que por dois votos quase rendia à atriz um prêmio no Festival de Veneza depois de disputar a preferência com lendas do cinema internacional como Katharine Hepburn e Lilli Palmer; a repercussão ruidosa de A Cabana do Pai Tomás na TV brasileira em 1969, entre outros momentos relevantes na história da artista.
A série de entrevistas com Juliana Vicente se dá enquanto Ruth de Souza se preparava para o desfile da escola de samba Santa Cruz que a homenageou em seu enredo de 2019, ano do seu falecimento. Em meio aos preparativos, uma das principais reflexões que Juliana Vicente extrai da atriz é sua percepção sobre o racismo que sofreu ao longo da carreira pela estereotipação de papéis ou pelas dificuldades que enfrentava, algo não vivenciado por suas colegas brancas. Em algumas passagens, Ruth de Souza aborda falas e atitudes de suas colegas de trabalho brancas testemunhadas no cotidiano dos bastidores da TV e do cinema e o mais interessante do registro é a forma como a atriz lidou com isso nos seus últimos anos, à luz de um momento muito mais empoderador para artistas pretos do que o seu. Ruth de Souza fala sobre o assunto com muita sabedoria e leveza, há força política, mas não há ressentimentos, apenas consciência da resiliência que teve para enfrentar tudo aquilo e, consequentemente, do valor da sua trajetória.
Inventivo e poético, Diálogos com Ruth de Souza encontra equilíbrio entre a homenagem afetuosa a um ícone aos olhos da sua realizadora e a acuracidade do registro histórico. O documentário encontra espaço para o lirismo através das suas dramatizações, resgata imagens preciosas da história das nossas artes audiovisuais no esforço de preservar a memória e reverencia uma das artistas mais importantes do nosso país com seus últimos registros em vida.
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