O MARINHEIRO DAS MONTANHAS
Em O Marinheiro das Montanhas, o cineasta Karim Aïnouz (Madame Satã, Praia do Futuro) visita a Argélia, país de seu pai, como uma forma de entender o impacto da ausência dele na sua criação e descobrir-se através de um resgate das suas origens. O longa é inteiramente marcado pelos registros que Aïnouz fez dessa viagem, por materiais de arquivo (fotos do seu próprio álbum familiar) e por uma tocante narração em primeira pessoa na qual o diretor elabora seus sentimentos para sua falecida mãe como na redação de uma carta.
Relatos em primeira pessoa como o que Aïnouz faz em O Marinheiro das Montanhas costumam ser interessantes apenas para os seus autores, externalizando uma postura que oscila entre a abordagem egocêntrica ou a excessivamente intimista. No entanto, aqui, Aïnouz faz tudo de maneira tão poética, não apenas no texto narrado, mas no exercício de montagem que o seu filme promove, que O Marinheiro das Montanhas causa um efeito distinto no espectador, sobretudo porque o cineasta contextualiza suas origens em um cenário geopolítico, a colonização africana e a ditadura militar no Brasil, que fizeram seus pais se conhecerem em uma universidade dos EUA e se afastarem quando o diretor nasceu. Nesse sentido, o cineasta se constrói, como tantas outras pessoas do seu tempo, como alguém de origem imprecisa, híbrida, amplificando suas inquietações, sua natural sensação de deslocamento ao longo da vida, em busca de algum sentido em meio a esse desfacelamento provocado pela política.
Por ser algo relatado como um diário, ao longo de O Marinheiro das Montanhas, essas ideias surgem dispersas, organicamente entrecortadas pelo fluxo de pensamento. No entanto, logo, o grande tema do filme é revelado ao seu narrador e, consequentemente, ao público. Assim, Aïnouz tenta compreender um conflito pela independência do país de seu pai com a França, enquanto busca em desconhecidos da viagem algum parentesco, até encontrar remanescentes da família Aïnouz e pessoas que conheceram o seu avô. O cineasta tenta imaginar quem poderia ter sido se ele e sua mãe tivessem ido morar com o pai na Argélia, ao mesmo tempo em que resume para o público quem se tornou ao fincar raízes no Ceará quando a mãe retorna ao Brasil.
O filme de Aïnouz é um relato bastante subjetivo e complexo sobre identidade e histórias familiares que descobre um contexto geopolítico a partir do privado, ou melhor, explora as reverberações deste no âmbito mais íntimo do seu narrador. A jornada empreendida em O Marinheiro das Montanhas dimensiona todo e qualquer processo de colonização e luta pela independência como algo ainda mais violento, traumático e devastador quando transportado para o âmbito privado, micro.
NARDJES
Aïnouz encontra as grandes temáticas da sua obra na conclusão de Nardjes quando através da narração da própria protagonista reflete sobre as diferentes experiências de gerações argelinas com governos opressores - no caso, os pais e avós de Nardjes com os colonizadores e a protagonista com os atuais governantes da Argélia. No fim das contas, o documentário acaba contando a experiência de uma juventude em um contexto social que convoca incessantemente o espírito de luta na sua população e como tudo isso rouba anos da vida das pessoas. Ao mesmo tempo em que temos contato com o esgotamento psicológico daqueles personagens, o ativismo surge como postura inevitável para qualquer cidadão minimamente consciente de sua realidade, dimensionando como é difícil viver em países marcados por um histórico de violência a democracia.
Infelizmente, quando Nardjes ganha o seu grande mote, o filme está perto do seu desfecho. A sensação é que Aïnouz fez o filme no modo "vou fazer os meus registros e ao longo dessa jornada descobrirei sobre o que esse filme é". Nesse sentido, o filme adota a linha narrativa do seu próprio processo de realização. É uma proposta válida e há recompensas ao longo da projeção, sobretudo no desfecho, mas tem uma certa dificuldade para "mostrar a que veio".
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