Crítica: Barbie

 



Um dos projetos mais improváveis do ano, Barbie traz a mais famosa, longeva e lucrativa linha de brinquedos da Mattel para a batuta da indicada ao Oscar Greta Gerwig (Lady Bird), cria do cinema independente estadunidense. Ainda, Barbie tem um roteiro que é fruto de mais uma parceria da cineasta com Noah Baumbach, com quem fez Mistress America e Frances Ha. Se o leitor interpelasse qualquer cinéfilo ou crítico anos atrás dizendo que Gerwig e Baumbach estavam envolvidos em um filme da Barbie, uma boneca loira que vive em um mundo cor-de-rosa, sendo esse projeto investido por um grande estúdio como a Warner, que, como sabemos tende a pasteurizar qualquer iniciativa de blockbuster baseado em uma grande marca, certamente seria descredibilizado.

Surpreendentemente, o projeto existe e vai na contramão de qualquer expectativa que se tenha a respeito dos dois lados. Barbie é um "filme de estúdio", com todo o entretenimento que pode proporcionar, balizando as ambições autorais dos seus realizadores por aquilo que se espera de um filme mais escapista. Ao mesmo tempo, fica nítido que Gerwig pôde fazer com o longa aquilo que queria, fazendo da comédia seu principal norte, mas trazendo como elemento fundante reflexões existenciais inesperadas a respeito da maneira como a vida contemporânea nos aprisiona em cobranças pessoais baseadas em projeções (de ideais de beleza, de uma vida perfeita e produtiva) que só nos levam a frustrações. 


No filme de Gerwig, acompanhamos mais um dia como todos os outros vividos por uma Barbie padrão, boneca interpretada por Margot Robbie. Ela leva uma vida perfeita em sua casa cor-de-rosa e seus compromissos sociais na Barbieland com outras Barbies e alguns Kens que rodeiam todas elas em busca de atenção. Quando a protagonista começa a questionar aspectos da sua própria existência, ela passa a apresentar defeitos e deve fazer uma viagem para o mundo real a fim de encontrar a sua dona e saber o real motivo da mudança repentina. 

Gerwig faz um filme impecável do ponto de vista visual graças ao trabalho irretocável do cenário construído por Sarah Greenwood. Tudo é muito colorido em Barbie, predominando um pink chiclete em construções e móveis que simulam perfeitamente uma textura brilhante do plástico de brinquedos de criança. Narrativamente, o filme acerta no tom da sua comédia ao não se levar a sério e fazer comentários autoconscientes sobre aquele universo, mas jamais desdenhando do seu material de origem, o que é uma falha muito recorrente de obras que se aventuram por essa abordagem (exemplo, filmes de super-heróis que fazem críticas a clichês de filmes de super-heróis, mas que, não se dando conta de que integram aquele gênero, fazem pouco caso do mesmo). Também é interessante como mesmo transitando entre dois mundos, a Barbieland e o mundo real, Barbie se apresenta para o público como um universo conciso, com demarcações precisas entre esses dois espaços, mas preservando uma identidade cartunesca que permeia toda a obra em seus mais diferentes contextos. 


Margot Robbie tem o carisma necessário para carregar essa história, garantindo a simpatia e empatia do público por uma personagem que nas mãos de uma atriz menos habilidosa poderia resultar em uma caricatura ou em uma performance mais apática. Ryan Gosling brilha em muitos momentos com o non sense dos dilemas de identidade do seu Ken, protagonizando um número musical inesquecível. America Ferrara também tem ótimos momentos como a dona da boneca interpretada por Robbie, sobretudo quando tem uma importante fala diante de um grupo de Barbies na última hora do filme. Também merece menção a atriz Rhea Perlman que na pele de Ruth Handler, a criadora da Barbie, protagoniza com Margot Robbie alguns dos momentos mais emocionantes do longa.  

Barbie diverte com a lógica absurda do universo que Greta Gerwig constrói com o orçamento que a Warner lhe deu para produzir algo com essa dimensão e com o diálogo que seu roteiro estabelece com a história da boneca da Mattel, mas também é um filme que, curiosamente, costura reflexões e emoções profundas sobre como nos flagelamos o tempo inteiro com algumas amarras sociais, a maioria delas construídas com todo o aparato das lógicas de consumo do capitalismo e seus protótipos daquilo que deveríamos almejar ser. Em Barbie, Gerwig usa um dos sustentáculos desse sistema, um brinquedo que durante anos foi acusado de disseminar estereótipos e ideais de vida ilusórios para jovens garotas, a fim de estabelecer uma ponte crítica, reflexiva e emocional com o espectador a respeito da nossa relação com essa fantasia da perfeição e dos papéis que devemos cumprir na sociedade (mulheres e homens também, porque aqui até o Ken tem a sua própria crise). 

Podemos ser cínicos e apontar que, mesmo com toda essa ousadia, Gerwig está, no fim das contas, fazendo um filme sobre a Barbie que vai alavancar as vendas da Mattel, pode render uma sequência e que deve faturar horrores na sua semana de estreia. Porém, como antecipamos linhas atrás, o mérito da cineasta em Barbie é não se envergonhar das raízes capitalistas desse seu novo projeto, bem diferente de Lady Bird e Adoráveis Mulheres. Gerwig se apropria do seu material-fonte, assume seus "poréns" longevos com o mesmo, mas também o ressignifica e reverencia aquilo que na sua origem apresentava uma singularidade tornando Barbie um lançamento singular dessa temporada de blockbusters hollywoodianos.   


Avaliação


Título original: Barbie
Ano: 2023
Duração: 114 minutos
Nos cinemas
Direção: Greta Gerwig
Roteiro: Greta Gerwig e Noah Baumbach
Elenco: Margot Robbie, Ryan Gosling, America Ferrera, Will Ferrell, Michael Cera, Kate McKinnon, Rhea Perlman, Simu Liu, Emma Mackey, Kingsley Ben-Adir, Nicole Coughlan, Dua Lipa, Alexandra Shipp, Annie Mumolo.


Assista ao trailer:


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Chovendo Sapos: Crítica: Barbie
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