Crítica: Ela disse

 

Hollywood contra a parede

Filme expõe investigação jornalística que transformou as relações trabalhistas na indústria cinematográfica.  



Em 2017, uma reportagem do The New York Times tornou públicos os inúmeros casos de assédio (sexual e moral) e estupro envolvendo o chefão da Miramax, Harvey Weinstein, considerado um Midas da geração de cineastas estadunidenses dos anos 1990 e das campanhas de premiações, como o Oscar. Entre as denunciantes estavam atrizes como Rose McGowan, Ashley Judd e Gwyneth Paltrow, além de assistentes, que em mais de três décadas foram vítimas das investidas do produtor. O caso veio na leva do movimento #metoo e foi importante para mudar as políticas nas relações trabalhistas nos EUA, especialmente no que tange às relações de gênero na indústria do entretenimento. 

Claro que, em algum momento, Hollywood ia utilizar essa história em algum produto audiovisual. Ela disse não é o primeiro filme a abordar o caso, o indie A Assistente já fez isso, mas talvez este longa represente uma incursão mais assertiva e simbólica no assunto, já que traz consigo todas expectativas típicas de uma estreia da temporada de premiações do cinema, território que já foi dominado por Weinstein. 

O longa dirigido por Maria Schrader (diretora alemã de O Homem Ideal e da minissérie Nada Ortodoxa) narra o percurso da investigação jornalística que as repórteres Megan Twohey e Jodi Kantor empreenderam para expor o escândalo envolvendo Harvey Weinstein. Assim, Schrader faz um filme no encalço de clássicos do gênero como Todos os Homens do Presidente e o recém vencedor do Oscar Spotlight, com a diferença de que essa história agora é protagonizada por mulheres que investigam um assunto palpitante nas suas esferas identitárias, o assédio sexual e moral no ambiente de trabalho. Schrader administra de forma muito direta e sem sensacionalismo esse prisma particular de Ela disse. 


Ao mesmo tempo que Ela disse parece um pouco protocolar, sendo muito parecido com outros filmes do gênero ao perseguir com obsessão totalitária os passos da investigação jornalística, deixando em segundo plano a vida privada das suas repórteres, é interessante notar algumas sutilezas bem-vindas na abordagem do roteiro de Rebeca Lenkiewicz. Mesmo que o filme coloque o trabalho dessas personagens em primeiro plano, não as constrói como figuras robóticas sem dinâmicas familiares ou mesmo apelam para o clichê do profissional workaholic que abdica sua vida pessoal. Fica evidente desde o primeiro ato de Ela disse como Megan e Jodi são profissionais competentes e obsessivas como convém à representação usual do jornalista nas telas, mas que elas também são mães, esposas, se sensibilizam com as histórias que encontram, enfim, têm relações de afeto fora do campo do trabalho, têm empatia com suas fontes e conseguem conciliar as diversas dimensões das suas vidas.  

No âmbito das atuações, cabe destacar a interpretação de Carey Mulligan como Megan Twohey. A atriz coleciona desempenhos formidáveis ao longo da sua carreira em filmes como Educação e Shame e aqui dá mais uma amostra de que é uma das melhores da sua geração. Mulligan passa credibilidade quando a personagem está em campo, ao mesmo tempo que lida com as sutilezas da atual condição de sua saúde mental após passar por uma depressão pós-parto e um princípio de pânico depois de uma experiência ruim com uma matéria de assédio sexual envolvendo Donald Trump, meses depois eleito presidente dos EUA. Zoe Kazan também está muito bem como Jodi Kantor, mas talvez Carey tenha mais elementos para trabalhar em cena que sua parceira e acabe se destacando do grupo. 

Ela disse peca um pouco quando embaralha toda a dramatização da investigação jornalística com elementos reais, como a inserção de cenas e depoimentos de Ashley Judd, um atrito entre ficção e realidade que no lugar de ser positivo, mostra-se distrativo e destoa de todo o filme. Fica evidente como o filme ganha muito mais unidade quando traz o caso das assistentes assediadas interpretadas por atrizes como Jennifer Ehle e Samantha Morton. 


Há algumas questões que atrapalham uma melhor fruição de Ela disse, mas é algo que exponho como conhecedor do caso Harvey Weinstein. O filme sofre com uma certa falta de ineditismo na exposição dos fatos. Ela disse é marcado pela ausência de suspense que tão bem faz ao gênero. Não é culpa da diretora ou da roteirista, claro, mas do próprio movimento da história. O longa é baseado em um caso amplamente conhecido na indústria, então muitos que acompanham o noticiário hollywoodiano sentirão em Ela disse  falta de ineditismo, de um fator surpresa. Muitos sabem quem foi Harvey Weinstein, no que ele esteve envolvido e quais foram as consequências da publicização do seu escândalo. Possivelmente, para o público que desconheça o caso ou não saiba de suas minúcias, isso não fará muita diferença, mas não poderia deixar de frisar essa ótica pessoal sobre a obra. 

Apesar desses percalços, Ela disse é um longa muito bem conduzido por Maria Schrader e roteirizado por Rebeca Lenkiewicz. As realizadoras sabem reverenciar todo um histórico da indústria do cinema estadunidense de filmes sobre investigações jornalísticas, ao mesmo tempo que empreendem mudanças sutis nos ritos dessas obras, sobretudo na construção dessa persona do jornalista. 


Avaliação


Título original: She said
Ano: 2022
Duração: 129 minutos
Nos cinemas
Direção: Maria Schrader 
Roteiro: Rebeca Lenkiewicz
Elenco: Carey Mulligan, Zoe Kazan, Patricia Clarkson, Samantha Morton, Jennifer Ehle, Ashley Judd, Andre Braugher, Angela Yeoh, Sean Cullen, Maren Heary

Assista ao trailer:


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Chovendo Sapos: Crítica: Ela disse
Crítica: Ela disse
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