Ver para crer
Em mais uma incursão bem-sucedida em língua inglesa, Sebastián Lelio discute fé religiosa e nosso regime de crenças nas histórias que nos contam.
Baseado no romance de Emma Donoghue, O Milagre conta a história de uma enfermeira convocada para prestar serviços em um vilarejo na Irlanda em 1862. Ela deve investigar o caso de uma garota que, conforme os moradores alegam, milagrosamente, consegue se manter de pé mesmo se submetendo a um rígido jejum. Com essa premissa, o recente trabalho do chileno Sebastián Lelio (A Mulher Fantástica e Gloria) se desdobra em questionamentos sobre a fé, mas, inesperadamente, também sobre a nossa relação com as imagens na fruição de obras ficcionais.
O Milagre é o segundo trabalho de Lelio em língua inglesa, os demais foram Desobediência e o remake da sua própria obra Gloria Bell, estrelado por Julianne Moore. No longa, como compete às melhores adaptações, o realizador extrapola os horizontes do próprio romance e procura nele um sentido peculiar, uma interpretação claramente enviesada de um realizador cinematográfico que se apropria do material-fonte para falar sobre algo que lhe é palpitante, o seu próprio ofício. Assim, em O Milagre, Lelio compõe um conto repleto de signos sobre a recepção cinematográfica e nosso regime de crenças, borrando qualquer fronteira entre a fé religiosa e cinefilia, por exemplo.
Desde o primeiro instante, O Milagre não esconde a artificialidade dos mecanismos e estratégias de encenação da realidade nas telas, a presença de imagens de um set, os personagens que olham direto para a lente da câmera e o antigo invento feito por uma imagem frente e verso em um cartão que dá a impressão de movimento quando um barbante que a sustenta por dois lados é girado. Tudo isso indica que Lelio quer estabelecer uma relação entre a crença em narrativas religiosas e a maneira crédula como nos entregamos às imagens em movimento e às narrativas que elas convocam seja no cinema, séries, telenovelas etc.
Não obstante, O Milagre pontua uma crítica direcionada para o uso político e manipulatório da fé e como a mesma encontra guarida em momentos limítrofes do corpo social (crises econômicas, miséria, fome). Lelio faz isso ao dar grande destaque para o conflito entre a protagonista e os homens de poder daquele vilarejo, que parecem se apoiar nas narrativas milagrosas da garota em jejum para contornar um grave quadro social.
Florence Pugh, a enfermeira Lib Wright, e Tom Burke, o jornalista Will Byrne, interpretam as pessoas da razão (ciência) naquele vilarejo, ele compreendendo mais a mentalidade da população local já que sua origem está lá. Ambos estão ótimos em seus respectivos papéis, mas O Milagre é mesmo um filme para Sebastian Lelio mostrar mais uma vez como é um artista habilidoso na arte de contar histórias através do cinema.
Diferente das demais obras da carreira de Lelio, O Milagre é um longa que demanda ainda mais background do espectador, talvez um filme feito por e para "entendidos" na linguagem audiovisual. Para esse público, sem dúvidas, o longa possui recursos bem engenhosos e é uma experiência cheia de recompensas.
Na relação entre a fé cega de uma terra arrasada pela miséria que em tempos de crise precisa se apegar aos milagres de uma santa, e a artificialidade mágica das telas assumida como real na espectatorialidade, Lelio faz um filme que se passa no século XIX, mas que conversa muito com nossos tempos de fake news e manipulações de imagens em movimento. Nesse sentido, as relações entre manipulações da fé e o consumo de imagens ficam ainda mais íntimas. Vivemos em um contexto social no qual o relato de mentiras adentra na esfera política e estabelece uma relação intrínseca com a religião (isso acontece no Brasil na medida em que uma extrema direita tem como sustentáculo a fé e o uso manipulatório das mídias, especialmente, audiovisuais). É refrescante perceber como o cineasta se apropriou de um material como esse e o revisou, estabelecendo relações ainda mais íntimas com questões tão palpitantes do nosso tempo.
Avaliação
Título original: The Wonder
Ano: 2022
Duração: 108 minutos
Disponível na Netflix
Direção: Sebastian Lelio
Roteiro: Sebastian Lelio e Alice Birch
Elenco: Florence Pugh, Tom Burke, Kila Lord Cassidy, Toby Jones, Ciarán Hinds, Brian F O'Byrne, Elaine Cassidy, Dermot Crowley, Josie Walker, Niamh Algar, David Wilmot.
Assista ao trailer:
COMENTÁRIOS