Em nome da filha
Pacto Brutal reafirma a admirável saga de Glória Perez pelo direito ao luto e pela preservação da memória de sua filha assassinada em 1992.
Lembro de acompanhar com certa frequência a telenovela De Corpo e Alma em 1992 e da maneira como a jovem Daniella Perez chamou todas as atenções para si no folhetim. O drama denso da escritora Glória Perez que abordava de maneira séria o transplante de órgãos através da relação entre as personagens de Cristiana Oliveira e Tarcísio Meira tinha em Yasmin, personagem de Daniella, uma espécie de ponto de fuga. Não foi à toa que, imediatamente, Daniella Perez, filha da autora da novela, se tornou o destaque do folhetim das 20h, além do talento, ela interpretava uma jovem do subúrbio carioca que sonhava ser uma grande dançarina, destoando do tom grave de todos os demais personagens da história.
Para toda uma geração, foi um choque ver a imagem daquela jovem da ficção se diluir na brutalidade dos registros do assassinato da sua intérprete no final daquele ano. Em dezembro de 1992, o corpo de Daniella Perez foi encontrado em um matagal na Barra da Tijuca com marcas de perfurações próximas do seu coração. Horas depois, o Brasil foi surpreendido com a notícia que um dos colegas de trabalho de Daniella foi um dos responsáveis pelo crime.
Trinta anos depois do assassinato de Daniella Perez, Glória Perez consegue enfim mexer no passado que os assassinos da sua própria filha não deixam morrer, tamanha a crueldade com que tentam contornar o imaginário popular com versões de uma história cujos meandros já foram revelados em sua verdade por um julgamento. A série documental Pacto Brutal de Tatiana Issa e Guto Barra para a HBO Max é uma forma de chamar a atenção para os equívocos nas narrativas dessa história que ficaram incrustados no imaginário popular por uma cobertura desastrosa do jornalismo sensacionalista que transformou os assassinos de Daniella em celebridades.
Pacto Brutal tem o mérito de ter como fio condutor da sua história a autora de telenovelas Glória Perez. Mais uma vez, movendo admiráveis esforços para proteger a sua filha diante de uma memória constantemente vilipendiada pelos assassinos ou por uma mídia sensacionalista, como bem dimensiona o documentário, Glória Perez sabe narrar todos os eventos do assassinato da jovem com uma riqueza de detalhes que impressiona o público. Glória é uma protagonista completa no documentário. A escritora exibe uma força admirável ao assumir as investigações do crime e buscar justiça, apresenta um faro ímpar para desvendar alguns nós do caso e comove o espectador pelo seu luto não vivido. A personalidade de Glória contrasta com a frieza e o narcismo dos dois assassinos da sua filha, não ouvidos pelo documentário. A ausência de ambos é uma decisão acertada tendo em vista que o caso já foi solucionado e eles não têm absolutamente nada a acrescentar na história, uma vez que suas versões fantasiosas já foram ouvidas em demasiado. Trazer os assassinos de Daniella para o vídeo faria Issa e Barra incorrerem no mesmo erro do Aqui Agora, do Fantástico ou Ratinho em diferentes momentos da cobertura do caso.
Os registros de uma fonte tão interessante quanto Glória Perez não renderiam uma reconstrução dos fatos tão rica procedimental e emocionalmente não fosse a capacidade dos diretores Tatiana Issa e Guto Barra na idealização dos episódios de Pacto Brutal. Os diretores orientam os depoimentos colhidos de modo que eles sirvam para a confecção de episódios que possuem eixos temáticos: o crime, a repercussão pública, o papel de Glória Perez na investigação, os assassinos e o julgamento. Para cada um desses eixos, Issa e Barra puxam os eventos e depoimentos que servem como alicerce daquela temática. Estruturalmente, Pacto Brutal é um trabalho exemplar.
O documentário é excelente como experiência emocional e intelectiva. Pacto Brutal sabe reconstituir todos os meandros do caso, ao mesmo tempo que possui uma sensibilidade rara em séries documentais true crime. Em cada episódio, Issa e Barra fazem questão de dimensionar o impacto do assassinato de Daniella Perez na vida dos seus familiares e amigos. Reduzir o caso ao crime bárbaro em si seria incorrer em outro erro dos noticiários que cobriram o crime na época. Em cada episódio, a memória de Daniella e o impacto do crime na dimensão privada daqueles que a amavam conseguem ser apreendidos pelo espectador. Tudo é muito didático sem subestimar a capacidade intelectual e sensível do público.
É muito difícil recuperar as ranhuras das narrativas trôpegas sobre o assassinato de Daniella Perez ao longo de trinta anos. A mídia sensacionalista deu muito holofote para o ego do assassino, enquanto sua companheira conseguiu o anonimato. Ambos reconstruíram suas vidas às custas de narrativas tortas sobre a vítima que encontraram receptividade e ainda resistem no imaginário popular pelo machismo da sociedade brasileira, um cenário que culpabilizou Daniella e até Glória pelo crime. Diferente de outra série documental true crime recente e também exemplar, O Caso Evandro, Pacto Brutal constrói sua singularidade e excelência não pela apresentação de fatos novos, mas por contar a história como ela deveria ter sido contada desde sempre, colocando vítimas e assassinos em seus merecidos papéis.
Avaliação
Título original: Pacto Brutal - O Assassinato de Daniella Perez
Ano: 2022
Disponível na HBO Max
Direção: Tatiana Issa e Guto Barra
Documentário
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