Olhares da história
Através de uma trama sobre abduções alienígenas, Jordan Peele aborda em seu mais recente filme o racismo no audiovisual hollywoodiano.
Por trás da trama de invasão alienígena proposta por Jordan Peele em Não/ Não Olhe!, o cineasta mobiliza uma série de discussões a respeito da presença dos negros na produção audiovisual estadunidense ao longo dos tempos, ao mesmo tempo, o diretor afirma a emergência (ainda bem) de novos tempos. Nesse sentido, a força de Não! Não Olhe! como alegoria acaba se sobrepondo a qualquer leitura literal a respeito da trama de dois irmãos herdeiros de uma longeva criação de animais para a indústria do cinema. Após a morte do pai, OJ (Daniel Kaluuya) e Emerald (Keke Palmer) testemunham a ação de um OVNI que abduz tudo que está na vizinhança do seu negócio.
A premissa, no entanto, é apenas a superfície de Não! Não Olhe!. Emerald e OJ descobrem que para não serem sugados pelo misterioso objeto voador é importante não encará-lo com o olhar, ao mesmo tempo em que, a partir desse evento fantástico, os irmãos passam a se enxergar, se tornam mais cúmplices e percebem um no outro a força para enfrentarem os desafios que se apresentam. Assim, Não! Não Olhe! nos dá na tela a vivência de todo grupo social oprimido e os mecanismos de afeto necessários para a sobrevivência em qualquer realidade que lhe é violenta.
Como em filmes como Corra! e Nós, mas talvez menos coeso que ambos, Peele utiliza uma narrativa de horror para dimensionar a vivência da comunidade negra dos EUA. Aqui, a particularidade é o próprio ofício do realizador, já que a indústria do audiovisual é apontada de maneira bem evidente na história. Nada mais natural, os negros raramente foram representados e, consequentemente, pouco se viram nas telas ou, quando se perceberam lá, foram estereotipados ou surgiam como suporte de protagonistas brancos.
A vinculação dos irmãos OJ e Emerald à primeira imagem em movimento registrada no cinema é a pista mais evidente da crítica social do diretor, um homem negro apagado da captura de um cavalo galopando. Em dado momento da história, o personagem de Daniel Kaluuya passa a ocupar o lugar do cowboy no faroeste hollywoodiano de horror alienígena de Peele, devolvendo a presença do negro na tela. Além disso, a intensa vigília do OVNI aos irmãos e como eles escapam de qualquer ação violenta do objeto voador ao não encarar aquilo que seria o seu globo ocular diz muito sobre o racismo cotidiano e sobre a relação do olhar dominante (opressor, distante) para esse extrato social. Esses elementos confirmam a mente criativa de Peele na construção de alegorias certeiras na elaboração de uma crítica social. É o cinema de Jordan Peele em grande potência.
O cineasta articula todas as suas metáforas sociais com uma habilidade já conhecida na direção, cativando o olhar e mantendo a atenção do espectador em diversos momentos de tensão ascendente do filme. Entre os momentos mais destacáveis de Não! Não Olhe! está o banho de sangue promovido pelo OVNI acima da casa dos irmãos vividos por Palmer e Kaluuya. Além disso, o cineasta tem como trunfo dois ótimos atores em cena: Kaluuya interpreta OJ com a gravidade necessária, um rapaz que sabe manter o controle nas situações mais limítrofes (seja o ataque de um OVNI às falas ofensivas em um set de cinema); e Palmer capta as atenções do público com uma personagem muito eloquente, sua Emerald é a pitada de humor que sempre se faz presente nos filmes do diretor (basta pensarmos na participação de Lil Rel Howery em Corra! e Winston Duke em Nós).
Nem tudo são "flores" em Não! Não Olhe!. Peele apresenta aqui uma narrativa bem menos predisposta à concatenação linear de ideias do que Corra!, por exemplo. Não sei até que ponto todo o subtexto do filme será assimilado pelo público. Além disso, dividindo a história em capítulos que intercalam eventos do passado e do presente e muitas vezes os interrompendo abruptamente, Peele faz um filme marcado por ótimas cenas e insights que funcionam muito bem isoladamente, mas que parecem recusar qualquer tipo de coesão. A estrutura narrativa adotada pelo realizador em Não! Não Olhe! pode ser um entrave na relação de alguns espectadores com o filme.
Não! Não Olhe! traz Jordan Peele como um cineasta contemporâneo ao momento atual do cinema. O racismo mais uma vez é esmiuçado e representado de maneira muito eficiente na tela. O diretor usa alegorias, mas o recado é certeiro. Não! Não Olhe! parece ainda mais especial para profissionais da área e pesquisadores, seu teor metalinguístico o coloca como anunciador de um momento histórico presente, onde ascendem olhares antes silenciados. O mais recente trabalho de Peele tem esse teor de marco temporal, eco das aspirações atuais e refrescantes para o audiovisual na medida em que se coloca como representante do momento em que os meios de produção são dados a negros, mulheres e LGBTQIA+ e os olhares já não são os mesmos.
Falta a Não! Não Olhe! a espontaneidade, irreverência e a tão bem arquitetada construção narrativa de Corra!, uma "primeira impressão" de Peele que ficou e que o diretor ainda não conseguiu superar. Em muitos momentos, Não! Não Olhe! soa como um trabalho que parece mais tenso do ponto de vista criativo. O mais recente longa do diretor sofre o tempo inteiro a pressão de corresponder às expectativas de Peele sobre si, parece o tempo todo ser governado pelo dever de oferecer a "próxima obra-prima" do cineasta, mais robusta, grave e ambiciosa do ponto de vista da linguagem. Esse tipo de cobrança não faz bem ao projeto e o reflexo disso está nesse modus operandi cerebral e aguerrido que se dissocia do entretenimento do público. Em dado momento, a dispersão narrativa de Não! Não Olhe! aproxima Peele da fase "em baixa" de M. Night Shyamalan, diretor que após O Sexto Sentido deixou-se levar por uma crença em torno do seu culto como "novo autor do suspense". É precoce dizer que Peele tende a ser isso, mas Não! Não Olhe! faz ligar um "sinal de alerta".
O que não resta dúvidas é que, mais uma vez, Peele coloca a cabeça do espectador para funcionar e Não! Não Olhe! não é o tipo de obra que se contenta com apenas uma assistida. É o tipo de longa que demanda constantes revisões e que as interpretações de suas alegorias sejam socializadas em conversas, pela crítica, o que é cada vez mais raro na era do audiovisual fast food dos serviços de streaming . Há filmes inclassificáveis e que repelem qualquer tipo de avaliação ou nota apressada em um trabalho de resenha crítica como o que propomos aqui e que só o tempo traz alguma percepção mais conclusiva nesse sentido. Não! Não Olhe! é um desses filmes.
Avaliação
Título original: Nope
Ano: 2022
Duração: 130 minutos
Nos cinemas
Direção: Jordan Peele
Roteiro: Jordan Peele
Elenco: Daniel Kaluuya, Keke Palmer, Steve Yeun, Brandon Perea, Michael Wincott, Wrenn Schmidt, Keith David, Devon Graye, Terry Notary.
Assista ao trailer:
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