Crítica: Elvis


Cheio de gingado

Baz Luhrmann dirige com energia e criatividade a cinebiografia do astro do rock. 


Baz Luhrmann realizou entre os anos 1990 e 2000 a chamada trilogia da cortina vermelha, composta pelos filmes Vem Dançar Comigo (1992), Romeu e Julieta (1996) e Moulin Rouge! (2001), que por si só deveriam credenciá-lo como um dos maiores talentos do cinema nas últimas décadas. No entanto, parte do público não perdoa tropeços e a repercussão dos seus títulos seguintes, Austrália (2008) e O Grande Gatsby (2013), o último ainda tinha o crédito do sucesso comercial, deixou um certo dissabor entre os críticos e uma cinefilia mais exigente. Assim, a cinebiografia Elvis, lançada com alvoroço no último Festival de Cannes, representa um retorno de Baz ao lugar que nunca lhe deveria ter sido tirado, o de visionário. Mesmo que o termo tenha sido vulgarizado na indústria pelas campanhas de estúdios, não vejo melhor definição para o trabalho do cineasta.

Se em filmes como Romeu e Julieta e Moulin Rouge!, Baz Luhrmann virou do avesso as formas como se realizavam adaptações literais de clássicos para as telas e o musical hollywoodiano, trazendo-os para a linguagem do seu tempo, a era do cinema digital, com aquela montagem frenética e hiperbólica, Elvis representa uma extensão desse mesmo projeto cinematográfico aplicado às cinebiografias, tão em voga na indústria nos últimos anos. O mais recente longa de Luhrmann faz com a trajetória de um dos maiores (se não o maior) ícone da música estadunidense o que a maioria desses trabalhos realizam. Elvis apresenta uma estrutura clássica apresentando os eventos que fizeram parte da vida do cantor Elvis Presley em ordem cronológica. Assim, sabemos de sua infância, sua adolescência, sua relação com o Coronel Tom Parker, que o explorou comercialmente de forma abusiva, seu casamento com Priscila Presley, sua ida para o cinema, sua fase Las Vegas, seus vícios e sua morte precoce, a ascensão e queda do ídolo está na tela. Porém, Luhrmann consegue tornar essa experiência original ao empregar sua visão particular na narrativa desses eventos tendo a montagem e a criatividade da sua direção como suas grandes aliadas para tornar Elvis uma experiência de fato especial. 


A montagem do filme pode soar dispersa, por vezes intercalando linhas do tempo, utilizando sobreposições, incrustrações e janelas que exibem simultaneamente em um mesmo plano diversos eventos. No entanto, Luhrmann não é os Daniels (os diretores do famigerado Tudo em todo lugar ao mesmo tempo) e como na maioria dos seus filmes onde esse recurso esteve na centralidade da sua comunicação com o espectador, em especial Moulin Rouge!, esses expedientes de edição servem para estabelecer sínteses de informações, criar elos narrativos e associações. Assim, da mesma forma que, por exemplo, acessamos de maneira resumida o passado do poeta Christian (Ewan McGregor) em Moulin Rouge! compreendendo a essência daquele personagem em poucos minutos no ínicio do longa (suas brigas com o pai, sua ida a Paris), temos em conta o passado de Elvis, suas influências musicais e a relação com seus pais de forma igualmente econômica através de expedientes de montagem semelhantes. Nesse sentido, Baz nem precisa apelar para a busca de um recorte na história do seu protagonista famoso a fim de sintetizar sua personalidade, alternativa encontrada por Pablo Larrain em Jackie Spencer, o cineasta opta pela clássica ambição épica das cinebiografias, contar a vida inteira do personagem, mas o faz de forma extremamente interessante, técnica e narrativamente arrojada e eficiente, soando como uma aplicação madura de recursos que já surgiam de maneira brilhante no seu iconoclasta musical de 2001. 

Ao mesmo tempo, há inserções bem interessantes entre as cenas mais dramáticas do filme e que são obra da direção inquieta e criativa de Luhrmann. De imediato, surge a lembrança da sequência em que o diretor apresenta os primeiros anos do casamento de Elvis e Priscila como um teaser de um musical de Hollywood, dialogando justamente com a fase em que o astro da música se aventura no cinema. Ao mesmo tempo, as apresentações do cantor no palco apresentam uma energia contagiante, dimensionando a experiência do público da época de testemunhar a performance eletrizante do artista em seus shows e o efeito do seu gingado com a plateia. 

O êxito na dramatização desses momentos em específico não é só da direção de Luhrmann, mas também da interpretação explosiva e cheia de vida do ator Austin Butler, intérprete do artista. A equipe de maquiagem e cabelo do filme conseguiu conferir a Butler a semelhança física com o cantor, contudo, pouco teria resultado sem o esforço do seu intérprete na busca pelos trejeitos e o tom de voz da estrela do rock. É claro que Butler está um estouro quando vive Elvis nos palcos, mas fora dele consegue incorporar toda a personalidade conflitante do cantor, inseguro e rebelde na mesma proporção. Butler está hipnótico em Elvis


Dramaticamente, o filme funciona na tensão entre os esforços do coronel Tom Parker de controlar a personalidade de Elvis e impor direcionamentos para sua carreira e o ímpeto do artista de transgredir e buscar sua independência, com êxitos pontuais a duras custas. Assim, é fundamental para Luhrmann ter Tom Hanks na pele do empresário de Elvis, conseguindo um feito que nenhuma outra empreitada do ator de fato alcançoi, apesar de alardear tentarem: fazer o oscarizado protagonista de Forest Gump Filadélfia interpretar nas telas uma figura extremamente odiosa. Tom Parker se valia de uma aparência inofensiva para tecer sorrateiramente uma teia praticamente irrompível de exploração econômica da imagem de Elvis. Hanks vive um sujeito extremamente repugnante e que personifica a ganância desmedida e a corrupção do homem. O ator imprime no personagem um olhar inescrupuloso e uma maneira sonsa na forma como se relaciona com Elvis, chantageando-o e camuflando suas verdadeiras intenções como empresário do artista. 

Esse conjunto de fatores se junta ao olhar oportunamente contextualizador sobre a ascensão de Elvis que o filme possui. Luhrmann faz questão de buscar o brilhantismo do astro, mas frisa como Elvis em dada medida se tornou um produto artificial de uma indústria interessada em utilizar sua imagem (um homem branco extremamente bonito) para tornar vendável elementos culturais originários da comunidade negra que todos viam como potencialmente comercializáveis, especialmente o R&B. Assim, o longa faz um grande serviço de não desmerecer o artista biografado, que de fato tinha algo de especial como performer, mas problematiza esse esquema perverso de apropriação da indústria cultural. Nesses esforços, claro que a presença do coronel Tom Parker de Tom Hanks é fundamental, ele quem percebe o potencial artístico e comercial de Elvis e gruda nisso como um parasita.  


Esse caldo cultural representado pelo legado artístico de Elvis Presley também é muito bem aplicado para Baz Luhrmann pensar a sua trilha sonora. Ele já havia tentado algo do gênero com O Grande Gatsby, mas acredito que em Elvis consegue executar esses esforços com mais êxito. A trilha de Elvis por vezes contempla em uma mesma peça musical as influências do cantor (o gospel, o R&B, o country), a música do próprio artista e aquilo que foi influenciado na contemporaneidade pelo seu trabalho. 

É bonito de ver um cineasta se apropriar tão bem do clássico, mantendo a sua essência e a sua vocação popular, mas, de maneira inquieta e produtiva, buscar meios para criativamente mexer nas suas bases, torná-lo. Baz Luhrmann faz isso de forma inigualável em Elvis, uma biografia de roupagem clássica mas que rompe com certos protocolos. Um filme cheio de vida, de ideias, de sentimentos, de energia e de personalidade como o próprio Elvis Presley. 
 

Avaliação


Título original: Elvis
Ano: 2022
Duração: 159 minutos
Nos cinemas
Direção: Baz Luhrmann
Roteiro: Baz Luhrmann, Craig Pearce e Sam Bromell
Elenco: Austin Butler, Tom Hanks, Olivia DeJonge, Helen Thompson, Kelvin Harrison Jr., Richard Roxburgh, Dacre Montgomery, David Wenham, Kodi Smit-McPhee, Luke Bracey, Xavier Samuel.

Assista ao trailer:


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Chovendo Sapos: Crítica: Elvis
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