Crítica: Titane

 
Quando criança, Alexia sofre um acidente de carro que faz os médicos colocarem próteses de titânio no seu corpo a fim de reverter os danos graves causados pelo ocorrido. Anos depois, acompanhamos a vida da personagem já adulta fazendo algumas apresentações sensuais ao ar livre junto a um automóvel estilizado. A jornada dessa protagonista será marcada por uma série de episódios de violência e pelo seu encontro com um homem em busca do seu filho desaparecido há dez anos. 

Por Titane, a cineasta Julia Ducournau venceu a Palma de Ouro na edição do ano passado do Festival de Cannes. O mais recente filme da realizadora da Raw, outro longa "estranhíssimo" por inúmeras bizarrices e pelo teor violento da sua narrativa (ele é protagonizado por um grupo de universitários canibais), não é das obras mais agradáveis de se assistir. Em Titane, Ducournau faz questão de preencher a sua história com personagens que se caracterizam pela ausência de traços de humanidade, Na maioria das vezes, eles não fazem questão de ser agradáveis uns com os outros ou conquistar a simpatia do espectador. 

A protagonista interpretada com fúria  pela novata Agathe Rousselle não tem afeto por ninguém ou por nada, nem mesmo pelo automóvel com o qual mantém uma relação sexual (!!!!). Tudo na personagem é puro instinto. Alexia age conforme a convocação dos seus desejos. A violência, inclusive, é expressão habitual da personagem, que acaba se transformando em uma notória serial killer. Rousselle transforma a personagem literalmente em uma máquina, com gestos precisos e automáticos, apresentando para o espectador um trabalho de uma fisicalidade que impressiona, mas logo descobrimos outra faceta dessa protagonista. 

É no instante que Alexia passa a ser procurada pela polícia que Titane aciona uma mudança de chave na sua própria história. O objetivo de Ducournau com uma protagonista tão instintiva e ausente de qualquer traço de afeto é re-humanizá-la na medida em que ela cria intimidade com o solitário bombeiro interpretado por Vincent Lindon, uma figura que surge na história para dar abrigo a Alexia. Lindon vive um homem que se vicia em drogas para amortecer a dor de não saber o paradeiro do próprio filho e que, desesperadamente, se apega a qualquer ilusão de reencontrá-lo. É através do laço que Alexia estabelece com esse personagem em um momento de extrema vulnerabilidade que vemos uma outra faceta da protagonista, outrora tão implacável, imbatível e feroz. 

Titane não é das experiências mais fáceis para o espectador. Ducornau faz questão que toda a narrativa seja uma experiência fisicamente angustiante não só para os personagens como para o público. Alexia comete agressões contra si e contra os outros personagens e em cada um desses atos a protagonista se transmuta fisicamente. Além disso, a cineasta torna o público parte desse processo ao afetar os nossos próprios sentidos através dos recursos que o audiovisual coloca a sua disposição. O público se contorce a cada pele rasgada ou golpe desferido pelo prendedor de cabelo da protagonista. Titane é quase uma experiência em 4D. 

É um filme marcado por personagens que possuem uma comunicação áspera e que absorve esse tipo de expressão como linguagem. Toda a jornada dura que o espectador enfrenta para acompanhar a trajetória de Alexia é fundamental para que o final catártico preparado pela sua realizadora tenha algum tipo de efeito. É na economia de afetos ao longo da narrativa que Ducornau transforma Titane em uma jornada emocionalmente eficiente no seu desfecho. É um filme que provoca, que angustia e que tem na sua forma seu mais poderoso instrumento narrativo. 



Avaliação:


Título original: Titane
Ano: 2021
Duração: 104 minutos
Disponível no Mubi
Direção: Julia Ducournau
Roteiro: Julia Ducournau
Elenco: Agathe Rousselle, Vincent Lindon, Garance Marillier, Lais Salameh, Mara Cisse, Marin Judas, Myriem Akheddiou, Bertrand Bonello.   

Assista ao trailer:


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Chovendo Sapos: Crítica: Titane
Crítica: Titane
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