O Cão que não se Cala é um filme que revela aos poucos para o espectador os reais interesses dos seus investimentos criativos. Durante parte do inventivo conto da cineasta Ana Katz sobre um homem incansavelmente testado por sucessivas adversidades da vida, o espectador pode ser tomado por indagações a respeito do lugar específico para onde a diretora quer levá-lo com sua narrativa.
No filme, Sebas, protagonista vivido por Daniel Katz, irmão da diretora, perde o cachorro, o emprego, passa a viver de bicos no meio de uma crise econômica, vai morar com a mãe por uns tempos para conseguir arcar com suas despesas, é surpreendido por um evento mundial que fragiliza a saúde no planeta, se casa, tem um filho e se divorcia nesse meio tempo... A quantidade de situações que tomam conta da vida do protagonista de O Cão que não se Cala é surpreendente e, ironicamente, ele reage a todas elas com uma introspecção incômoda, mesmo que a realizadora trate tudo com algumas pitadas de humor.
É como se Sebas se acostumasse a passar por debaixo do radar e criasse uma resistência para lidar introspectivamente com eventos ruins, tanto que os demais personagens não movem um músculo de preocupação por sua condição. Essa construção da diretora só aumenta o incomodo da gente com a extrema passividade do protagonista. O comportamento do personagem traz para o filme algumas implicações estéticas, inclusive, já que a diretora opta por uma fotografia em preto e branco que reforçam a melancolia e a quietude de Sebas. Além disso, os momentos de maior expansão de sentimentos, como a morte da cachorrinha de Sebas, ou que apresentam proporções macro, são encenados pela diretora com desenhos, espécies de rabisco descompromissados em papel.
No fim das contas, a maneira esquisita com a qual o protagonista lida com tudo que lhe acontece acaba revelando também a serenidade de Sebas com contingências da experiência humana e a perversidade das estruturas sociais que cada vez mais o oprimem. Como destaca Katz na canção que encerra a história do protagonista de maneira esperançosa ou irônica, em algum momento, tudo acaba e ele enfim pode se reorganizar. A expectativa do personagem é essa.
Toda a situação vivenciada por Sebas faz com que o público crie links entre aquilo que é mostrado em O Cão que não se Cala e o que experimentamos com a pandemia da COVID-19, o que, em tempos tão pessimistas só torna a experiência de assistir ao longa bastante positiva. A cineasta traz no seu filme uma crítica social latente, sobretudo a desigualdades sociais que não permitem que todos nós tenhamos estabilidade e melhores condições de vida, mesmo em situações de crise global na saúde como a que passamos. Ainda assim, O Cão que não se Cala consegue ser leve e carinhoso com o público que vivencia o mundo pelos olhos de Sebas.
É uma pena que a gente só note as qualidade de O Cão que não se Cala quando ele está perto de terminar. No entanto, o tempo tomado pela realizadora para a sucessão de eventos complicados que tomam conta do protagonista faz completo sentido quando entendemos nos seus vinte minutos finais onde precisamente ela quer chegar com aquela história. No fim das contas, temos um trabalho com mais recompensas que deméritos, sobretudo por ser extremamente humano na forma como trata seu introspectivo e sofrido protagonista, conduzindo o espectador a diversas emoções ao longo dessa jornada.
Cotação
Título original: El perro que no calla
Ano: 2021
Integra a "Perspectiva Internacional" da 45ª Mostra de São Paulo
Disponível na Mostra Play
Direção: Ana Katz
Roteiro: Ana Katz, Gonzalo Delgado
Elenco: Daniel Katz, Raquel Bank, Juliata Zylberberg, Valeria Lois, Marcos Montes, Mirella Pascual, Carlos Portaluppi, Elvira Onetto.
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