A jornada do adolescente Jamie New em Todos estão falando sobre Jamie encontra paralelos com a de muitas princesas da Disney. Aos 16 anos, Jamie New luta contra estruturas sociais que inibem a sua verdadeira expressão e identidade e o impedem de desbravar o mundo da forma como ele deseja. A escola castradora de quaisquer ambições dos seus alunos e colegas e um pai homofóbico são os principais obstáculos desse jovem que sonha ser uma glamourosa drag queen. Tal qual Ariel que suspirava com o mundo dos humanos, Cinderela imaginando uma vida possível longe das vistas da sua madrasta ou mesmo Mulan que queria um destino diferente daquele reservado para meninas na China Imperial, Jamie New vive no subúrbio londrino, aspirando colocar para fora o seu alter ego Mimi Me, e a chegada da formatura parece anunciar a possibilidade dos sonhos do garoto enfim se realizarem.
Adaptação de um musical inglês, Todos estão falando sobre o Jamie assume escancaradamente a clássica estrutura da Gata Borralheira ao trazer para o público um filme high school que subverte muitas lógicas na indústria não pela forma como conta a jornada do seu protagonista, mas por colocar nessa tradição narrativa um personagem até então pouco explorado pela indústria. Com uma obra de apelo popular, temos um herói pouco visto até mesmo no nicho cinéfilo LGBTQIA+, o "afeminado", grupo que, indubitavelmente, é um dos que mais sofrem com a homofobia pois acaba desconstruindo naturalmente concepções sociais sobre como um homem deve se expressar no mundo. Em Todos estão falando sobre Jamie, temos ainda na biografia desse personagem a abordagem da cultura drag, cujo sucesso do reality show RuPaul's Drag Race aparou algumas arestas de preconceito sobre o assunto.
O musical ainda dá um passo a mais nas conquistas LGBTQIA+ na indústria cultural trilhadas por títulos comerciais como Com Amor, Simon. Enquanto o protagonista de Com Amor, Simon quebrou o tabu de ter um filme high school no qual o mote do seu protagonista masculino adolescente não era ganhar o seu primeiro carro ou conquistar a garota dos seus sonhos, mas sim "sair do armário" e viver um grande amor ao descobrir-se interessado afetiva e sexualmente por rapazes, Todos estão falando sobre Jamie traz um herói já declaradamente homossexual, cujo sonho de ser uma drag queen tem como marco o seu primeiro par de sapatos de salto plataforma dado pela sua própria mãe como presente de aniversário. Se pensarmos nas comédias high school que tínhamos na década de 1980, por exemplo, personagens como Jamie New sequer existiam ou quando surgiam era figuras estereotipadas que ficavam em segundo plano e eram ridicularizadas pelo herói da história.
Todos estão falando sobre Jamie é ainda um musical repleto de números criativos que cumprem muito bem a tradição do gênero de usar a música e a dança como pontos de virada da história, exposição do universo interno de suas personagens ou síntese de histórias passadas. Aqui, por exemplo, o longa faz um excelente uso da presença do ator Richard E. Grant como uma veterada drag queen, uma autêntica fada madrinha da nossa Cinderela. Além disso, muitos números usam e abusam das lógicas de performance para videoclipes, com direito ao seu protagonista fazendo menções a divas da cultura pop como Madonna.
O diretor Jonathan Butterell consegue ainda equilibrar a atmosfera lúdica e leve de conto de fada, compondo com doçura o seu protagonista vivido com muita sensibilidade por Max Harwood, com a presença de momentos duros na história que tornam a trama verossímil. Entre estes conflitos está a homofobia declarada do pai de Jamie. Ele rejeita o filho a ponto de não querer mais contato com ele após a sua formatura sob o pretexto de "já ter cumprido" a sua obrigação de provedor, um subplot do longa que rende, inclusive, momentos de grande impacto emocional, entre eles o número musical entre o protagonista e sua mãe e a cena na qual ele provoca a figura paterna como uma líder de torcida em uma partida de futebol.
É claro que, na esteira de musicais como Hairspray (2007) e Amor Sublime Amor (1961), todos os conflitos sociais que reverberam na formação pessoal do seu protagonista acabam "resolvidos" com uma grande celebração coletiva de canto e dança representada pela festa de formatura de Jamie, algo que, inclusive, o filme faz melhor que A Festa de Formatura (2020), musical que teve mote parecido, mas que trouxe como protagonistas um casal de meninas. Nesse terceiro ato celebrativo de Todos estão falando sobre Jamie, Jamie finalmente consegue ser aceito como drag pela conservadora diretora/professora do seu colégio e por seus colegas que lhe faziam bullying.
Na realidade, a gente sabe que o processo de desconstrução social é muito mais lento e trabalhoso e que nada é resolvido de maneira tão instantânea assim. No entanto, apesar de buscar a credibilidade, narrando com precisão os conflitos pessoais de um protagonista como Jamie e tudo aquilo que ele sofre em um contexto social marcado pelo preconceito, Todos estão falando sobre Jamie quer, acima de tudo, se apresentar para o público como uma obra leve. É um conto de fadas musical que, como tantos outros, oferecem obstáculos ao seu protagonista - e, nesse sentido, o filme ganha uma camada de urgência quando os mesmos surgem tão reais e condizentes com a realidade do seu herói e com a de tantos outros meninos como ele -, mas que são resolvidos com um pouco de esperança, dando fôlego para quem passa pelos mesmos problemas em um contexto não tão mágico quanto o da ficção.
Cotação:
Ficha técnica
Título original: Everybody's talking about Jamie
Ano: 2021
Disponível no Amazon Prime Video
Direção: Jonathan Butterell
Roteiro: Tom MacRae
Elenco: Max Harwood, Lauren Patel, Sarah Lancashire, Richard E. Grant, Samuel Bottomley, Ralph Ineson, Sharon Horgan, Shobna Gulati.
COMENTÁRIOS