Caminhos da Memória é um autêntico noir que também mescla elementos do sci-fi. Em uma Miami decadente e corrupta, prestes a ficar submersa, Hugh Jackman interpreta um ex-militar que ganha a vida propiciando aos desolados cidadãos da metrópole retornar ao passado para reviver situações das quais são saudosos, como reencontrar um grande amor já falecido. Eis que o protagonista é surpreendido por uma cantora da noite vivida pela atriz Rebecca Ferguson, nossa femme fatale, que o procura por razões banais em comparação com a maioria dos clientes que o personagem atendeu naquele dia: ela quer descobrir o paradeiro da sua chave de casa. É então que, ao se apaixonar perdidamente por esta mulher, vive um intenso romance com ela, mas, subitamente, a perde de vista, iniciando então uma jornada para desvendar o mistério por trás do seu desaparecimento que o levará a um grupo de criminosos.
O longa dirigido e roteirizado por Lisa Joy após a empreitada como showrunner de uma das séries mais bem-sucedidas do momento, Westworld da HBO, apresenta ideias muito curiosas. A apresentação de um futuro em frangalhos que passa tanta desesperança para seus habitantes a ponto de praticamente todas as suas personagens viverem mergulhadas em suas lembranças é um ponto alto da proposta que permite, compondo situações e personagens singulares. Ao mesmo tempo, Caminhos da Memória consegue construir um universo ficcional promissor com sua realidade hipotética na qual o mundo como conhecemos está prestes a ceder e mesmo assim a corrupção dos ricaços encontra fôlego para piorar ainda mais as discrepâncias sociais e a situação de miséria de uma parcela da população, mostrando como a humanidade de fato é um projeto mal-sucedido.
Todo esses aspectos singulares da história de Caminhos da Memória acaba assumindo uma importância secundária, reduzidas a contexto daquilo que de fato interessa ao longa: traçar uma trama investigativa que transforma a história de amor entre os personagens de Jackman e Ferguson no centro das suas preocupações. Tudo parece um cenário para a grande jornada de realização afetiva do herói dessa história (Jackman) e, no lugar de se importar com toda a interessante dimensão social que o filme apresenta, temos que nos contentar com as preocupações e o destino de um único personagem.
Há questões complicadas no percurso da história, como a maneira como o filme lida com o tempo presente e o acesso às memórias dos personagens pelo sistema utilizado pelo protagonista, algo que deixa a estrutura confusa. Há ainda uma confiança excessiva na memória humana para recriar com tanta riqueza de detalhes os eventos passados, sem apresentá-los com o mínimo de furo ou teor fantástico, como se espera de uma narrativa que se fia na mente humana. Trata-se do mesmo problema que fez A Origem de Christopher Nolan levemente derrapar em 2010 (estamos preparados para esta conversa?). Quando remontamos acontecimentos na nossa mente, as coisas não são tão realistas assim quanto Caminhos da Memória as apresenta.
Apesar dos percalços e de não se ater àquilo que surge como mais interessante em sua história (os meandros do seu futuro distópico), Caminhos da Memória conta com ótimos atores em bons momentos na tela. Sempre competente, Jackman é uma escalação perfeita e dá credibilidade ao típico protagonista noir, um sujeito imerso nos seus próprios problemas, desiludido com qualquer perspectiva positiva de futuro para si e para a coletividade. Rebecca Ferguson também está ótima como uma autêntica femme fatale, uma figura que transmite dúvida o tempo todo para espectador. Particularmente, os grandes momentos do filme ficam com Thandie Newton, intérprete da parceira de trabalho do personagem de Jackman. Newton encarna uma figura cínica e "pé no chão" que se coloca desde o princípio como um ótimo contraponto ao romântico colega de cena. Há ainda uma breve participação de Marina de Tavira, indicada ao Oscar de melhor atriz coadjuvante por Roma em 2018. A atriz mexicana vive de maneira interessante uma ricaça que constrói em casa um cenário do seu passado.
É um filme de ideias promissoras não aprofundadas e perdidas pelo filtro de um estúdio interessado em oferecer um simples escapismo com verniz de trama intelectual e emocionalmente profunda. Tem bons atores que estão bem em cena e uma direção correta, mas deixa o tempo inteiro a impressão de que está sempre aquém do que poderia ter sido.
Cotação:
Título original: Reminiscence
Ano: 2021
Disponível no HBO Max
Direção: Lisa Joy
Roteiro: Lisa Joy
Elenco: Hugh Jackman, Rebecca Ferguson, Thandie Newton, Cliff Curtis, Marina de Tavira, Daniel Wu, Mojean Aria.
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