por Enoe Lopes Pontes
Damos continuidade na nossa cobertura do Festival de Gramado 2020 com mais quatro curtas que integraram a sua programação:
Blackout (SP, 2019)
Procurando fazer uma crítica ao racismo e a polícia brasileira, a diretora e roteirista Rossandra Leone traz o filme Blackout. Ambientado em uma realidade distópica e futurista do Rio de Janeiro, é claro o seu esforço para contar uma boa história. No entanto, o curta é bastante problemático do início ao fim. Ainda que entregue boas discussões, não faz isto da melhor maneira possível. A começar pelos diálogos intensamente expositivos. Não há espaço para sugestão na obra. Tudo é explicado diversas vezes, até esgarçar o texto. Isto acaba reverberando no trabalho dos atores.
Aparentemente tensos em cena, os intérpretes não conseguem imprimir organicidade, o que deixa o tom bastante artificial. Os principais incômodos são com as pausas e com o colorido que tentaram dar para as palavras. O ritmo precisa estar não apenas nas sequências em si, mas na pronuncia das frases. E falta esta noção ou treino. Blackout conta com uma boa reviravolta. Contudo, não consegue segurar o seu plot twist, fazendo com que seu desfecho seja ainda mais perdido que o restante da projeção.
Você tem olhos tristes (SP, 2020)
Desde o início, o filme revela as tensões passadas por Luan (Diogo Leite) em seu trabalho. O jovem está no ramo de entregas por aplicativo e faz sua jornada de bicicleta. Como o curta já começa com uma cena intensa, ele poderia perder a sua força, mas, não é o que ocorre aqui. Ele consegue avançar na discussão, criando uma atmosfera forte de angústia. Há, ainda, o bom balanço das suspensões com os relaxamentos, sem deixar nunca o público esquecer o quanto os brancos são racistas, autocentrados e egoístas. Há um cuidado também em revelar situações cada vez mais impactantes, pois estas acontecem progressivamente, cada vez mais com pessoas que estão perto dele.
Então, se no início da projeção há um Luan que sofre com o racismo dos clientes, depois chega o momento de ver isto no amigo dele e, em seguida, na sua namorada e na tia dela (Gilda Nomacce). Nesta derradeira situação passada por Luan chega o ápice da produção. Primeiramente, existem detalhes pensados pela arte – seja na arrumação da mesa ou plano médio com três pessoas sentadas em posições distintas, passando uma ideia de sufocamento na tela. Além disso, o que é dito pelas personagens, quando e como, fomentam o que o também diretor e roteirista Diogo Leite deseja contar. Dentro deste contexto, o que mais impressiona é a maneira como Nomacce faz pausas cortantes. Elas são fundamentais para a expansão do constrangimento, da pontuação sobre o caráter de sua personagem e da falta de percepção dela do que é, de fato, o racismo. Claramente, ela é uma racista “disfarçada”, com um discurso programado para soar progressista, mas que nunca será, justamente pelo seu local de privilégio, pela falta de consciência disto e a ausência de vontade de saber.
Outros dois elementos que se pode apontar estão relacionados ao protagonista. O primeiro é uma característica que está em Luan e que está, justamente, presente no título. Enquanto todos ao seu redor agem para oprimi-lo, ele se mostra confiante e em busca de contornar todas as situações da melhor maneira possível. No entanto, basta checar os seus olhos para notar que eles sempre estão distantes e cheios de dor. Este é um elemento que demonstra uma profundidade, sensibilidade e compreensão de interpretação de Leite na construção de sua personagem. Este fator é chave para a segunda questão que vale ressaltar sobre Luan. Após toda a sua trajetória vista na trama, ele corta o ciclo que estava se formando ao redor dele. A partir daí, ele modifica a sua postura corporal e gestos. A maneira como foi filmada esta cena também contribui para o estabelecimento de sensação de proximidade com o plot twist.
Apesar
de tudo que foi apontado de positivo, em alguns momentos, a fotografia do filme
peca, principalmente pelo o que escolhe focar e por quanto tempo, além das
temperaturas escolhidas. Não é nada que comprometa a obra em si, porém retira
um pouco da sua qualidade.
Remoinho (PB, 2020)
O primeiro plano de Remoinho é forte e consegue expressar o sentimento da protagonista. O público pode perceber, nos primeiros minutos de projeção, que Maria (Caly Farias) retorna para sua casa, pois está indo embora de algo muito ruim e pesado. O quadro a coloca no centro e a sua presença é forte e cheia de energia. Após está sequência dentro do ônibus, porém, as coisas começam a desandar. A principal questão aqui é uma falta de foco da principal questão que o curta deseja contar.
As cenas não são bem aproveitadas. Os cortes acontecem um tanto abruptos, descartando qualquer possibilidade de progressão a ser construída ou até mesmo a empatia que estava sendo formada. A câmera também não contribui para a obra. Os planos não mostram o que é mais relevante para o enredo. Além disso, situações surgem durante filme e ficam desconexas com o todo, como a presença da amiga de Maria, que fica um tanto aleatória ali. Isto porque este passado da protagonista e/ou suas relações não foram trabalhadas. O resultado é uma produção solta, que desperdiça o seu potencial. Nota: 1 estrela.
O barco e o rio (AM, 2020)
A sensação mais forte durante a sessão de O Barco e o Rio é a de clausura. Sufocadas naquele ambiente fechado, Vera (Isabela Catão) e Josi (Carolinne Nunes) precisam lidar com as suas diferenças, angústias e desejos. Enquanto uma é religiosa e preza pela manutenção das vidas que a dupla leva, a outra é quem não suporta mais o seu cotidiano, que movimenta a trama e traz as mudanças. Apesar da dinâmica entre as duas ser bem realizada, com este forte contraponto explorado, a narrativa não avança muito e parece emperrar em certo momento. É como se todas as características postas para o enriquecimento e complexidade das personagens não reverberasse na própria história que está sendo contada. O resultado acaba sendo um tanto ingênuo e até literal. Mas, o mais incômodo é, justamente, essa aparente falta de rumo do enredo. A partir da saída de Josi, este elemento se torna mais forte.
Outra questão que pode ser pontuada é uma ausência de uma boa mão na direção de atores. As intérpretes não alcançam a transmissão de sensações necessárias, deixando a construção um tanto perdida, principalmente na figura da amiga de Vera (Márcia Vinagre), que imprime artificialidade nos diálogos e traz os olhos perdidos. A consciência espacial e corporal é um dos pontos principais para uma atuação bem sucedida. Não é o que ocorre aqui.
Apesar
de apresentar fragilidades, existem pontos positivos no curta, como a
fotografia de Valentina Ricardo que contribui fortemente para esta sensação de
sufocamento e confronto. Outro destaque é o desfecho da projeção. Vera,
finalmente, sai do barco, solta os cabelos e enxerga as possibilidades
chegarem. É nesta ação que a obra parece se encontrar outra vez. Infelizmente,
um tanto tarde, porém acontece.
COMENTÁRIOS