por Enoe Lopes Pontes
Entre os dias 18 e 26 de setembro, aconteceu a 48ª edição do Festival de Cinema de Gramado. Com curtas e longas-metragens brasileiros e internacionais, a exibição das obras foi realizada pelo Canal Brasil, tanto na televisão fechada como em sua plataforma streaming. Foram dez dias de evento e os vencedores deste ano podem ser conferidos no próprio site do festival.
O Chovendo Sapos acompanhou os filmes de Gramado deste ano e traz agora a primeira parte de um especial com os curtas-metragens assistidos. Confira!
4 bilhões de infinitos (MG, 2020)
Com sensibilidade e um olhar cuidadoso, Marco Antonio Pereira (Alma Bandida) leva seus espectadores a acompanhar a rotina de duas crianças, a solidão e as necessidades que vivem. Elas passam o dia inteiro sozinhas em casa, pois a mãe sai para trabalhar e o pai faleceu. Neste contexto, a história traz, gradativamente, detalhes dos poucos recursos que as personagens têm e como a dupla de irmãos consegue lidar com as situações complexas, focando na esperança de um dia viverem em uma realidade melhor e o cinema também tem a ver com isso. A relação com o audiovisual e da imaginação, trazida nos diálogos da menina e do menino é fomentada pelos enquadramentos presentes na obra, principalmente nos planos gerais, que revelam o espaço no qual eles vivem.
Há
um equilíbrio entre o melancólico - trazido pela presença dos tons azuis e das
sombras que aparecem na tela - com o esperançoso e inocente da infância - visto
nos detalhes, seja na cor verde das paisagens ou nos movimentos dos jovens atores. Há também um apuro no diálogo. Existe uma perspectiva pueril nele, mas
também maduro, profundo e cheio de camadas. A inocência é diretamente
balanceada com a dureza da realidade e das angústias daquele cotidiano.
Receita de caranguejo (SP, 2020)
A relação de uma mãe e uma filha é revelada de uma forma simples, porém profunda. O pai da protagonista faleceu, então as duas decidem ir para uma casa de praia e preparam juntas caranguejos para almoçar. A dinâmica entre elas é bastante orgânica. Há em Lari estes traços comportamentais típicos de uma adolescente (Thais Melo). Ao mesmo tempo em que é doce e prestativa, também é emburrada, com aquele olhar de tédio característico desta idade. Do outro lado, existe a construção desta mãe que brinca e tenta animar o clima, porém que revela preocupação em seu semblante ou tom de voz. Mas, todos estes detalhes delas são apresentados com sutileza e a falta de presunção do curta é um de seus maiores ganhos.
Os silêncios também são bem trabalhados. São os momentos nos quais é possível sentir a complexidade da situação que elas estão vivendo, ainda que não exista, em nenhum momento, alguma demonstração mais óbvia de tristeza ou luto. É também curioso de observar como a câmera, que passa a maior parte do tempo parada, investiga os caranguejos durante seu preparo e consumo. É como se a dupla ganhasse certo movimento e até poder, dentro desta cozinha, em uma atividade que as une. Há, no entanto, algumas "gorduras" no roteiro que quebram com o próprio ritmo que o filme instala, como na "microcena" na qual Lari está tomando sol e a mãe a chama para entrar na casa. São alguns instantes que sobram dentro do todo. Contudo, esta característica não interfere tanto no resultado final.
Subsolo (RS, 2020)
O ambiente da academia de ginástica pode ser extremamente irritante, estressante ou renovador, a depender do ponto de vista. O local e suas particularidades são tratados neste curta de Erica Maradona e Otto Guerra. Há um bom estabelecimento de comicidade na obra, porque existe uma exposição destas figuras na tela, que revelam o seus lados mais grotescos e ridículos. Há um exagero calculado nas expressões faciais das personagens, como são seus corpos e o que estão vestindo. Todos estes elementos contribuem para contar a história do filme e aproximam o espectador da narrativa. Os desconfortos das mulheres que frequentam este local surgem pontualmente, com gestos e olhares, de uma forma em que este espaço fica marcado pelo o que ele é: opressor.
Outro
ponto que chama atenção durante a projeção é a escolha de colocar uma fábrica
de embutidos embaixo da academia. O funcionamento das máquinas acontece a
partir dos esforços de quem está malhando no andar de cima. A carne que é
processada vai para o barzinho da esquina e é neste lugar que a trama se
encerra. Todo este fio condutor leva o espectador a compreender a metáfora que Subsolo deseja passar e o curta ainda
consegue deixar os acontecimentos amarrados, completando os ciclos das
personagens.
Atordoado, Eu Permaneço Atento (RJ, 2020)
Com diversos tipos de imagens de arquivo, mescladas com trechos de uma entrevista feita no presente, Atordoado, Eu permaneço atento conta os percalços, sentimentos e reverberações da ditadura militar na vida do jornalista Dermi Azevedo. É incrível observar a força das histórias que Azevedo conta e como elas parecem ganhar uma proporção ainda maior quando se tem a voz sua off. É como se elas deixassem mais claras as suas emoções e como se o espectador conseguisse enxergar o passado ganhando forma.
Grande parte desta característica está na personagem do curta, no que ele viveu e nos ganchos de suas memórias com o presente apavorante da política brasileira atual. Outro elemento que contribui para esta qualidade da obra é a montagem. Através de cortes e de algumas transições é possível se instalar uma atmosfera muito direta e forte. No entanto, apesar de ser o que há de melhor na exibição, em certos momentos, a quantidade de imagens fica elevada, o que causa um pouco de desgaste em quem assiste. São muitas informações para processar, dentro de um contexto tão pesado, que acaba gerando um sufocamento de ideias.
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