Cláudio Assis sempre foi nosso enfant terrible, aquele cineasta que opta pelo choque na exposição de suas histórias e por um discurso mais enfático e até extremo a respeito de temas sócio-políticos do Brasil. Até mesmo a figura pública do diretor é assim e sua biografia está repleta de episódios marcados por declarações que repercutiram bem e mal até mesmo entre os seus pares.
Dito isso, é de se estranhar, logo de cara, que Piedade seja um filme assinado por Cláudio Assis. No drama, temas que rondaram a carreira do cineasta, como o cotidiano das classes mais baixas de Pernambuco, a sexualidade mantida por debaixo dos panos de algumas de suas personagens e a bestialidade humana ainda estão lá. Os cenários também são bastante familiares à carreira de Assis, o principal deles é um cinema que funciona como um inferninho administrado pelo personagem de Cauã Reymond.
Acontece que todos esses expedientes que são velhos conhecidos na filmografia de Assis são apresentados de maneira mais branda para o espectador, ou seja, menos enérgica que o costume. Como consequência, o que Piedade tem a dizer sobre seus temas acaba sendo dissolvido diante daquilo que acaba sendo mais relevante para Assis nessa história, o drama pessoal dos seus protagonistas. No caso, o que acaba importando para o longa é a descoberta do paradeiro do filho desaparecido de Dona Carminha, personagem de Fernanda Montenegro.
Até aqui também nada demais. Assis está no direito e é até salutar e refrescante para sua filmografia buscar outras chaves de comunicação com o seu público. Optar pelo drama familiar torna Piedade o longa que mais tem capacidade de se conectar com as audiências com as mais variadas familiaridades com a gramática do cinema. O longa parece até ter uma conexão mais pessoal com o realizador, que dedica a história a sua mãe.
O problema é que em sua distinção Piedade não é satisfatório. O filme tropeça na tecitura do seu discurso social, que está presente na maneira como o realizador insere toda uma discussão sobre a depredação do ambiente e da geografia da cidade pelo capitalismo, aqui representado pelo personagem de Matheus Nachtergaele, um executivo pintado pelo longa ora de maneira patética ora como um sujeito de intenções obscuras. Aqui, a fala de Assis sobre seus temas sociais, diferente de longas como Amarelo Manga ou Baixio das Bestas, soa rasa e parece ter sido construída por um cineasta que sequer chegou a realizar trabalhos de muita personalidade (ainda que alguns deles questionáveis) nesse quesito, como Amarelo Manga e Baixio das Bestas. No que diz respeito ao seu drama familiar, a trama de reencontro entre mãe e filho não tem também muito viço, garantindo algum interesse mesmo pela presença em cena de atores que sempre estão muito competentes quando surgem na tela, em especial, Fernanda Montenegro, Irandhir Santos, Matheus Nachtergaele e Denise Weinberg, ótima numa breve participação por vídeo-chamada (!!!)
Piedade é o ponto mais brando da carreira de Cláudio Assis. Curiosamente, o diretor abaixa um pouco a intensidade da sua narrativa flamejante justamente em um momento de discussões acaloradas sobre o futuro do cinema brasileiro. Essa mudança de prumo poderia ter rendido uma bem-vinda variação em sua filmografia, mas resultou em uma obra pouco interessante, marcando por trás dela a presença de um realizador que emula em diversos momentos as marcas do seu cinema em uma versão mais light e com uma narrativa sem grande personalidade no seu tom e nos meandros da sua história.
Piedade, 2020. Dir.: Cláudio Assis. Roteiro: Hilton Lacerda, Anna Francisco e Dillner Gomes. Elenco: Fernanda Montenegro, Cauã Reymond, Matheus Nachtergaele, Irandhir Santos, Gabriel Leone, Mariana Ruggiero, Denise Weinberg, Francisco Assis Moraes, Arthur Canavarro, Nanego Lira. Integrante do festival Espaço Itaú Play, 85 min.
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