A adequação da comédia romântica ao século XXI


A comédia romântica foi um dos gêneros mais comercializáveis do cinema nos anos 2000. Era praticamente impossível passar pelos grandes complexos dos shoppings ou pelas locadoras nessa década e não se deparar com pelo menos um desses títulos por semana entre as ofertas, dos mais banais aos extremamente relevantes e inventivos exemplares. Por anos, a comédia romântica era o carro-chefe de alguns estúdios, fez a carreira de alguns astros como Julia Roberts, Cameron Diaz e Hugh Grant e teve a preferência do público em massa, ficando conhecido como chick flicks

Conforme a década de 2010 foi passando e a sociedade foi se transformando com pautas relevantes como o machismo e a homofobia, as discussões sobre os papéis de homens e mulheres nas relações ganharam outros contornos e determinados estereótipos e clichês desse gênero cinematográfico ficaram obsoletos. É claro que toda essa transformação social afetou bastante a comédia romântica, afinal estamos falando de um gênero centrado em temas que estavam sendo reenquadrados como gênero e sexualidade.  

O anacronismo de alguns exemplares do início da década escancarou a urgência de mudanças nos roteiros e fez com que a presença de alguns desses títulos nos cinemas minguassem. Basta lembrar, por exemplo, de Qual seu Número? lançado em 2011 com Chris Evans e Anna Faris no elenco (foto abaixo). O filme derrapava ao apresentar uma protagonista feminina condenada o tempo inteiro pela produção por listar suas inúmeras aventuras sexuais tal qual os homens sempre fizeram e foram taxados como garanhões. 

Esse olhar de julgamento para a atitude da personagem está presente na diferença de tratamento que o longa confere para os dois lados do casal principal, a mocinha de Farris começa a história toda liberal, mas muda o curso da sua própria biografia no encontro com o cafajeste boa gente interpretado por Chris Evans. Nada novo sob o sol, apesar do filme aparentar "quebrar tabus". Aliás, um dos traços de algumas produções desse tempo é essa aparência de subverter algumas ideias sobre homens e mulheres nas relações amorosas quando na verdade oferecem para o público o mesmo olhar problemático para a representação dos gêneros de anos atrás. Alguns títulos vão conviver com essa contradição na busca por uma chave de comunicação com o espectador do século XXI. 



Qual seu Número? não é o pior dos exemplares. Longas como A Verdade Nua e Crua de 2009 com Katherine Heigl e Gerard Butler são bem mais problemáticos, mas esse filme de 2011 acaba sendo emblemático no que tange ao empasse que realizadores e estúdios enfrentavam no início da década. Eles sentiam a urgência de mudar algo pois o público estava começando a perder o interesse por essas produções, mas não sabiam ao certo como fazer isso muito bem sem descartar por completo o holofote do interesse central do gênero e que lhe confere identidade, o foco no enlace amoroso dos seus protagonistas. Os filmes teriam que representar uma outra ideia de romantismo, uma representação mais contemporânea do encontro amoroso. 

A produção baixou a guarda e, nesse início de década, alguns poucos exemplares acabaram se sobressaindo pela inteligência dos seus roteiros. É o caso de Amor à Toda Prova com o elenco estelar composto por Steve Carell, Ryan Gosling, Julianne Moore e Emma Stone em 2011 ou de Será que? também de 2013 com Daniel Radcliffe no cast. No entanto, talvez o caso mais bem-sucedido e que demonstrou o fôlego do gênero seja o de Questão de Tempo de 2013 (foto abaixo), que, curiosamente, veio de uma das mais prolíficas fontes da comédia romântica a década passada, a produtora inglesa Working Title. 

Questão de Tempo era dirigido e roteirizado por Richard Curtis, realizador que brilhou com títulos como Simplesmente Amor (2003) e Quatro Casamentos e um Funeral (1994). A história protagonizada por Domhnall Gleeson e Rachel McAdams trazia viagens no tempo como um dos seus mecanismos narrativos e funcionou muito bem, se mostrando carismática, com ótimos desempenhos dos seus atores e não apelando para estereotipias. O filme de Curtis ainda se deu bem nas bilheterias faturando quase US$ 90 milhões mundialmente, tendo custado apenas US$ 12 milhões para ser feito. Era sinal de que talvez o público ainda tivesse o gênero como demanda.  



Apesar de sucessos comerciais como Questão de Tempo, o cinema mais vendável da indústria na década de 2010 era outro, os estúdios de cinema e os exibidores estavam mesmo interessados em passar filmes de super-heróis e o público pagante dos multiplexes tinha esse nicho como preferência. Franquias baseadas em personagens da Marvel e DC Comics dominaram o circuito comercial na década e a comédia romântica teve que buscar guarida em outra "casa". Na era dos streamings, a Netflix passou a produzir exemplares do gênero que foram bem recebidos pelo público, sobretudo as produções adolescentes, impulsionando até mesmo a carreira de alguns atores, como Noah Centineo e Jacob Elordi. 

O primeiro dos exemplares da Netflix a fazer algum barulho foi o vacilante A Barraca do Beijo de 2018 (foto abaixo), cujo equívoco central era romantizar duas relações extremamente abusivas. A heroína interpretada por Joey King mantinha com os dois protagonistas masculinos da história relações baseadas na chantagem emocional, claro, que a corda sempre arrebentando para o lado dela, seja com o amigo possessivo, seja com o crush controlador, ambas figuras podavam as ações da personagem principal da história sob a mofada justificativa da proteção. Apesar do anacronismo da trama, o filme foi um dos títulos mais streamados do site e já tem uma continuação com estreia agendada para julho de 2020. A Barraca do Beijo mostrou que determinados padrões ainda mereciam ser repensados, mas abriu portas para o gênero no site. 



As demais comédias românticas da Netflix acabaram destoando de A Barraca do Beijo e se alinhando com a notória política inclusiva da empresa, rendendo filmes que deram espaço para narrativas românticas protagonizadas por grupos sociais marginalizados no gênero, como gordos, homossexuais, negros, latinos e asiáticos. Títulos como Para Todos os Garotos que Já Amei e Sierra Burgess é uma loser cimentaram 2018 como o ano das comédias românticas no canal de streaming e vislumbraram a possibilidade da empresa ser a instância capaz de adequar um gênero aos nossos tempos. 

Essa política da Netflix era ainda mais interessante na prática pois a maior parte desses títulos falam de maneira  direta com um público ainda em formação, o adolescente. Nesse sentido, um tabu do gênero também começou a ser quebrado na década de 2010, a heteronormatividade dessas histórias. Comédias românticas com casais da comunidade LGBTQ+ já vinham sendo realizadas há algum tempo, mas muitas delas acabavam nichadas.

Alex Strangelove da Netflix chamou a atenção de imediato em 2018, mas fora da gigante dos streamings um grande lançamento comercial nos cinemas se destaca: Com Amor, Simon de 2018 (foto abaixo) discutia a "saída do armário" na clássica trama High School, que desde década de 1980 trazia gays no estereótipo do "pet" da mocinha ou mesmo como figuras ridicularizadas pelos protagonistas heteros. Em Com Amor, Simon, um protagonista homossexual tinha a sua própria história de amor para contar. 



No circuito do cinema independente estadunidense, as coisas também passaram a ser interessantes. Pela liberdade que esses títulos costumam apresentar das amarras dos estúdios em comparação com o cinema mainstream, alguns títulos indies conseguiram exibir narrativas inteligentes e sofisticadas do ponto de vista cênico, como é o caso de Com quem será?, dueto verborrágico protagonizado por Winona Ryder e Keanu Reeves em 2018. 

Algumas comédias românticas indies conseguiram até mesmo subverter algumas expectativas no gênero, como Permissão de 2017 (foto abaixo), no qual o casal principal vivido por Rebecca Hall e Dan Stevens consegue questionar ideias que são pedras fundamentais desse tipo de filme, a monogamia e a pré-concepção daquilo que seria um "final feliz". Inclusive, esse filme é mais bem sucedido no propósito de incluir o sexo ou a erotização das suas personagens com organicidade na história, algo que no início da década foi tentado de maneira pontualmente trôpega com exemplares mainstream como Amor e Outras Drogas e Amizade Colorida, que acabaram no final das contas servindo ao propósito de mostrar os corpos nus de seus respectivos astros e se apoiaram na sex comedy como argumento.



Em 2017, outra comédia romântica indie chamou atenção e dessa vez até ganhou força na temporada de premiações. Doentes de Amor  (foto abaixo) era roteirizada pelo também ator Kumail Nanjiani e por sua esposa Emily V. Gordon, que no filme é interpretada por Zoe Kazan, contando basicamente a história do próprio casal (foto abaixo). O filme explora temas pertinentes que já haviam sido discutidos quase vinte anos atrás em Casamento Grego. Doentes de Amor se preocupava em destrinchar o choque cultural que a união entre um paquistanês e uma americana causava em suas respectivas famílias, ressoando sobretudo na comunidade de imigrantes estadunidense, sempre excluída no gênero. O longa foi indicado ao Oscar de roteiro original, ao SAG de melhor elenco e recebeu o prêmio de melhor comédia no Critic's Choice Awards.



Com tantas boas iniciativas pelo caminho no final da década, o cinema mainstream volta a "abraçar" a comédia romântica. Em 2019, Paul Feig dirigiu Uma Segunda Chance para Amar reavivando a comédia romântica natalina. No mesmo ano, Charlize Theron e Seth Rogen protagonizaram Casal Improvável, que fazia comentários inteligentes sobre as próprias marcas da comédia romântica. No entanto, talvez o caso mais emblemático desse finalzinho de década tenha sido Podres de Ricos, produzido pela Warner em 2018 com um elenco inteiro de atores asiáticos (foto abaixo). O filme faturou quase US$ 240 milhões em todo o mundo e foi responsável por impulsionar a carreira de Constance Wu, que esteve em As Golpistas, Awkwafina, vencedora do último Globo de Ouro na categoria atriz comédia/musical por A Despedida, e o galã Henry Golding.



Esses e outros exemplos mostram como a comédia romântica encontrou o seu caminho na década de 2010. Um caminho que permitiu que o gênero pudesse se comunicar de maneira mais autêntica com o público, trazendo para as telas questões da vida real e se desprendendo de clichês e estereótipos que já não soavam bem e que engessavam suas histórias. Acabou também sendo uma oportunidade de testar novos recursos narrativos, novos desfechos, problematizações e ideias para suas histórias. 

A safra atual demonstra como o gênero se adaptou às contingências e demandas sociais e comerciais do seu tempo, com um propósito mais inclusivo de suas representações que dialogam com as expectativas do público contemporâneo. Temos assim uma produção que tem buscado se conectar com realidades mais próximas das vivências de fato das pessoas. Novos canais de exibição foram encontrados, trazendo mais relevância social para esses produtos, mas também a comédia romântica encontrou o seu caminho de volta para a tela grande. 

Onde encontrar os filmes comentados?
Qual seu número? - Amazon Prime Video
Questão de Tempo - Globoplay, Telecine Play
A Barraca do Beijo - Netflix
Com Amor, Simon - Google Play, Net Now
Permissão - Google Play, Net Now
Doentes de Amor - Globoplay, Telecine Play 
Podres de Ricos - HBO Go, Google Play

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A adequação da comédia romântica ao século XXI
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