'Hollywood' reescreve a era de ouro do cinema americano

 

Imagine se na Hollywood do pós-guerra os grandes estúdios de cinema fossem comandados por mulheres, os filmes fossem estrelados e roteirizados por negros e atores homossexuais pudessem viver publicamente suas relações amorosas sem o medo de sofrerem retaliações como quebras de contrato. As hipóteses em questão são lançadas na prática por Hollywood, minissérie criada por Ryan Murphy (o responsável por American Horror Story) para a Netflix, através da história de um grupo de jovens talentos que enfrentam dificuldade para entrar na indústria por representarem grupos marginalizados socialmente. 

Em parceria com Ian Brennan, com quem já tinha feito Glee e The Politician, Murphy traz para Hollywood um mix de situações e personagens reais com outras tantos ficcionais. Na minissérie, os personagens tomam às rédeas da situação e rompem a barreira de uma realidade que, por preconceito, mantinha toda a sua sordidez debaixo do tapete. 


Como a própria Eleanor Roosevelt sugere em dado episódio da série, tudo isso acaba sendo um movimento importante nessa reescritura da história pois leva em conta o poder do cinema de efetivar transformações culturais a partir do impacto que representações podem trazer em estruturas sociais longevas e discriminatórias. Não são os governos que trarão esse tipo de transformação importante para a mudança de mentalidade que afetará todas as esferas, mas os produtos culturais de alcance massivo, como é o caso do cinema, que na época retratada por Hollywood tinha essa potência em níveis estratosféricos. Imagina se no lugar de sugerir acessórios de moda e penteados de cabelo ou o consumo do tabaco, o cinema americano tivesse utilizado esse poder de influência para dar protagonismo a negros e homossexuais? Imagina o impacto que isso traria em toda uma estrutura e a colheita dessa ação que poderíamos ter em 2020 em diversas esferas sociais, não apenas na indústria do entretenimento? Hollywood lança essa questão. 

Na indústria, algumas respostas para essas hipóteses são dadas pela própria minissérie a partir de casos reais e outros ficcionais que dialogam com acontecimentos contemporâneos em Hollywood. O constrangimento aos assédios cometidos pelo agente Henry Willson, interpretado com brilhante acidez, egocentrismo e perversidade por Jim Parsons, talvez reverberasse anos mais tarde em casos como os de Bryan Singer e Kevin Spacey. A correção às injustiças cometidas contra a veterana atriz Jeanne Crandall, alçada quando jovem a promessa do cinema por sua beleza em papéis coadjuvantes, mantida sob as rédeas das investidas ameaçadoras de figurões da indústria e, posteriormente, relegada ao ostracismo conforme vai ficando mais velha, talvez tivesse feito com que a carreira de atrizes como Ashley Judd e Mira Sorvino, que, não por acaso, dá vida à personagem fictícia na série, tivesse rumos bem diferentes. E o que dizer da vitória do Oscar de melhor atriz por uma jovem atriz negra na década de 1950 e não tardiamente nos anos 2000 com a estatueta de Halle Berry por A Última Ceia? Esse tipo de cenário de suposições está latente em toda a minissérie, que torna palpável a origem de todos esses vícios sociais em uma estrutura patriarcal, branca e homofóbica. Nesse sentido, o trabalho é muito perspicaz nessa análise. 

A premissa de Hollywood é certeira e há muitos pontos a se admirar no desenvolvimento disso, como quando traz para a linha de frente a esposa do chefão de um grande estúdio em um cargo de autonomia de decisão nas escolhas do start de muitas produções cinematográficas se rebelando contra o posto redutor de esposa do homem poderoso, quando reescreve a trajetória de Rock Hudson (o excelente Jake Picking) e de muitos homossexuais da indústria que viviam suas experiências amorosas e sexuais na clandestinidade ou quando constrói uma cerimônia do Oscar histórica que repara atores negros (Hattie McDaniel) e de descendência oriental (Anna May Wong) vítimas de situações vexatórias pelos poderosos da indústria. Todos os elementos dispostos na mesa são apropriados para aquilo que os realizadores da série intentam fazer.  


É bem verdade que em alguns momentos o texto de Hollywood oscila entre a consciência de traçar esse universo paralelo em bases muito concretas e a ingenuidade de oferecer soluções muito simplórias para seus principais problemas. Isso surge como um incomodo mesmo que saibamos de antemão que a minissérie trabalha com uma fantasia sobre a história de Hollywood e que a partir de determinado momento os criadores devem concretizar os destinos mais impossíveis para seus personagens naquela época. Ao mesmo tempo que toda essa jornada de rompimento com o preconceito da indústria se mostra para o espectador como uma batalha repleta de dificuldades pelos caminhos até chegar aos gloriosos dias com o êxito de Meg, filme que na série reescreve a história desses personagens, em alguns momentos o roteiro acaba pesando a mão no happy ending e na construção excessivamente unidimensional de algumas figuras ao final da série. 

A sensação que temos no desfecho de Hollywood é que Murphy e Brennan transformaram toda sua trama em uma grande celebração onde tudo subitamente dá certo e todos os seus protagonistas confraternizam em união como numa festa de casamento do último capítulo de uma telenovela daquelas bem rasteiras. No entanto, o universo retratado em Hollywood é tão fascinante nessa mistura de realidade, ficção e realidade ficcionada que as decisões sobre o tom da minissérie são compreensíveis na maioria das vezes.

O que os criadores da minissérie querem fazer é transformar essa história imaginada sobre Hollywood em uma narrativa tipicamente hollywoodiana depois de oferecer com muito cinismo um retrato daquilo que de fato acontecia nos bastidores da indústria na época. É uma quebra no tom da atmosfera que soa incomoda, mas em partes parece propícia. Murphy e Brennan convertem a sórdida, sexy, pessimista e próxima da decadência representação de Los Angeles dos primeiros episódios em uma otimista, ingênua e celebratória instância dos sonhos nos episódios finais. Nesse sentido, fazer essa transição de tom quando a minissérie abandona a dura realidade contada pelos livros dos bastidores de Hollywood para narrar uma jornada supostamente possível de ruptura dos preconceitos soa pertinente. Murphy e Brennan fazem de Hollywood um clássico hollywoodiano que a Hollywood daquela época jamais contaria, mas que se contasse talvez fosse nesses termos. 


Hollywood, 2020. Criadores: Ryan Murphy e Ian Brennan. Elenco: David Cronenswet, Darren Criss, Jeremy Pope, Patti LuPone Laura Harrier, Joe Mantello, Dylan McDermott, Jake Picking, Holland Taylor, Jim Parsons, Michelle Krusiec, Mira Sorvino, Samara Weaving, Queen Latifah, Rob Reiner. Disponível na Netflix, 7 episódios. 

Assista ao trailer: 


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Chovendo Sapos: 'Hollywood' reescreve a era de ouro do cinema americano
'Hollywood' reescreve a era de ouro do cinema americano
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