Filho exemplar de um casal americano que o adotou quando ainda era pequeno, Luce Edgar é um estudante brilhante que está prestes a ir para a faculdade. Perfeito orador, Luce é admirado por todos os seus professores, menos pela exigente Harriet Wilson, que, a partir de uma redação em sala de aula, descobre no rapaz uma tendência à violência. Harriet chama então Amy, mãe de Luce, para conversar sobre suas suspeitas e é então que uma série de questões familiares mal resolvidas vêm à tona.
Dirigido pelo nigeriano Julius Onah (do inédito no Brasil The Girl is in Trouble e do repudiado O Paradoxo Cloverfield), Luce é uma adaptação da peça de J.C. Lee roteirizada pelo próprio para o cinema que a todo momento coloca em suspenso o grau de confiabilidade naquilo que seus personagens afirmam sobre os demais e sobre si. Esse estado de tensão, que transforma o drama em uma espécie de thriller familiar com tensões presentes, mas não sempre evidentes por estarem camufladas é um dos pontos mais certeiros do projeto que capta a fidelidade do espectador a todos os seus eventos.
O drama é um filme que sabe como poucos manter até o último segundo o caráter dúbio das intenções dos seus personagens. As suspeitas se alastram por todas as atitudes do protagonista, dos seus pais, que têm um profundo sentimento de culpa pela criação dada ao filho e de hiperproteção, e da professora Harriet Wilson interpretada por Octavia Spencer. Esse tipo de fator instiga o público, traz à tona personagens mais complexos em suas intenções e natureza do que poderíamos supor e torna o longa uma experiência bastante desafiadora e gratificante do ponto de vista espectadorial.
A dúvida é constante ao longo da narrativa. Quem está dizendo a verdade? Quem realmente é aquilo que transparece? Luce, com todos os seus atributos de jovem exemplar, seria mesmo capaz de cometer os atos que Harriet suspeita? A professora estaria agindo por vingança? Nem mesmo os pais interpretados por Naomi Watts e Tim Roth escapam dos questionamentos do público, funcionando, por vezes, como seus olhos para a própria narrativa que é tecida, mas também revelando alguns traços da complicada dinâmica familiar que vivenciaram com o garoto nos primeiros anos da adoção, quando o rapaz ainda lidava com o trauma de ter vindo de uma região de intenso conflito bélico na África. Todo esse background acaba trazendo à tona pais afetuosos, mas também excessivamente protetores e cheios de culpa.
Luce também é um filme que aborda sobretudo o processo de perda de identidade de um rapaz africano adotado por uma família branca de classe média dos EUA, que não tem qualquer qualquer consciência de classe. O próprio nome do protagonista (Luce) é um traço marcante desse processo, lembrado a todo momento pelos demais personagens como um indício do "embranquecimento" do rapaz. Assim, a professora por Spencer surge como essa peça incomoda na trajetória de Luce, abalando algumas de suas convicções moldadas e o próprio caráter do rapaz.
Gradualmente assumindo ares mais sombrios conforme a psiquê dos seus protagonistas é revelada, Luce capta neuroses germinadas na sociedade americana a partir da sua não superada dívida com a população negra do país. A hipocrisia do reconhecimento de méritos isolados e do assistencialismo tem um revés na ficção a partir de um complexo estudo de relações que se desembaraçam e se revelam ainda mais perturbadoras.
Luce, 2019. Dir.: Julius Onah. Roteiro: Julius Onah e J.C. Lee. Elenco: Kelvin Harrison Jr. Octavia Spencer, Naomi Watts, Tim Roth, Norbert Leo Butz, Andrea Bang, Marsha Stephanie Blake, Omar Shariff Brunson Jr., Noah Gaynor. Disponível no Net Now, 109 min.
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