Realizadora por trás de filmes como Tomboy e Garotas, Céline Sciamma retorna às telas com Retrato de uma Jovem em Chamas romance protagonizado por duas mulheres no final do século XVIII. No longa, acompanhamos a história de Marianne, uma jovem pintora contratada para ir até uma ilha fazer o retrato de uma jovem da sociedade a fim de apresentá-la ao seu futuro marido. Sem revelar o verdadeiro motivo pelo qual está na ilha, Marianne é apresentada a Héloise, jovem que será representada na pintura, como uma dama de companhia. Aos poucos as duas desenvolvem uma relação mais intensa e íntima e tudo isso é mostrado por Sciamma com muita sobriedade e delicadeza.
Sciamma desenvolve gradualmente a relação entre as protagonistas de Retrato de uma Jovem em Chamas condizente com os costumes da época. Assim, é um romance repleto de entrelinhas em seu discurso verbal, ganhando potência nas metáforas e subtextos dos diálogos das suas personagens, a expressividade da sua excelente dupla de atrizes e, sobretudo, no ótimo trabalho de fotografia de Claire Mathon, que leva para cada frame do longa cores e composições que aproximam o filme plasticamente das pinturas da época. Mathon faz isso sem que cada intervenção visual sua soe como uma convocação narcísica da atenção do espectador. Detalhes como a emblemática cena na qual o vestido de Héloise é consumido por chamas ou o momento onde ela, Marianne e a jovem criada Sophie procuram uma flor com propriedades medicinais (ambas nos remetem à histórica associação do feminino com a bruxaria) são composições imagéticas e pontuais na narrativa, saltando aos olhos quando devem saltar.
Na condução do seu romance, Sciamma cria uma história de cumplicidades, estabelecendo relações íntimas entre suas personagens femininas que, diante das circunstâncias de total tolhimento dos seus anseios, encontram uma na outra suporte e possibilidade de expressar seus desejos. Assim, é interessante para o espectador perceber Retrato de uma Jovem em Chamas como um romance entre duas mulheres em pleno século XVIII, marcado por obstáculos sociais que impossibilitam a completa realização amorosa do casal principal, mas também a formação de um microcosmo de apoio mútuo que se forma entre as três personagens femininas centrais da história.
Sciamma elabora reflexões sobre a questão de gênero na sociedade a partir de um retrato histórico que não é, em momento algum, autodidata, mas que procura construir suas considerações sobre o assunto nos movimentos mais sutis das suas personagens, tanto nas circunstâncias em que se abrem ao relacionamento que desenvolvem como nas situações em que recuam, contendo suas emoções, destacando como o universo interno dessas mulheres borbulha de possibilidades. A cena que encerra o filme e que destaca o ótimo desempenho da atriz Adèle Haenel, que vive Héloise, é um ótimo exemplo disso.
Portrait de la Jeune fille en Feu, 2019. Dir.: Céline Sciamma. Roteiro: Céline Sciamma. Elenco: Noémie Merlant, Adèle Haenel, Luàna Bajrami, Valeria Golino, Christel Baras, Armande Boulanger, Guy Delamarche. Supo Mungam, 121 min.
Assista ao trailer:
COMENTÁRIOS