por Hilda Lopes Pontes
O Fabuloso Destino de Amélie Poulain de Jean-Pierre Jeunet (França, 2001) e fotografado por Bruno
Delbonnel tem quase vinte anos e se mantém como um exemplo de filmes que,
de maneira exitosa, utiliza a linguagem cinematográfica para exacerbar as
características de sua tessitura narrativa. O longa possui uma
fotografia e também uma direção de arte que o tempo inteiro estão traçando outras linhas narrativas e fazendo as
personagens serem ainda mais ricas em suas construções, além de se comunicar de
maneira potente com o espectador.
A paixão da personagem título pelos detalhes da vida ajuda e muito na
construção de uma fotografia criativa. Há a própria presença da imagem
fotográfica entrelaçada com a presença de Amélie. Ela ama tirar fotos de lugares
diferentes ou que despertem sua atenção e ela se apaixona pelo rapaz que
coleciona fotos de uma cabine na estação de metrô. Além, claro, de seu amigo
meio que confidente ser um pintor, expondo assim como Poulain vê a vida, em
fotogramas, de maneira dramática e até cinematográfica. O longa segue esse
sentimento da personagem principal em sua características técnicas.
O apreço de Amélie pela fotografia é sublinhado pela narrativa de Jeunet. |
O filme já começa estabelecendo sua linguagem e as cores que perpassam toda a obra. Há no longa três colorações bastante usadas: o verde, o vermelho e o âmbar. O verde e o vermelho estão mais fortes na arte, ainda que em cenas pontuais apareçam em abajures e luminárias (vermelhas) e em certas personagens a luz esverdeada é vista para fazer contraponto com o âmbar.
Com inspirações na obra do artista plástico brasileiro Juarez Machado,
as três cores compõe características da personagem Amélie. O vermelho e o verde são expressivos no cenário e no
figurino, unem a dualidade da protagonista que vive entre a passionalidade + força (vermelho) e a esperança + calma (verde). Ambas são banhadas pela
luz âmbar, muitas vezes incidindo lateralmente a fim de reforça a criatividade, vivacidade e alegria de Poulain.
O vermelho, o verde e o âmbar estão sempre presentes na obra e expressam traços da protagonista. |
Há uma expressividade nas cores, uma saturação que permite sair do campo realista e cria um universo lúdico, para além de uma imagem que busca emular a realidade, “[...] em Amélie Poulain uma complexa paleta de cores foi criada à partir de cores existentes nos cenários via manipulação digital. Saturações aumentadas e tonalidades derivadas criam climas insólitos na fronteira entre o realismo e a fantasia", dizia Ebert ( 2010, p. 05).
Nessa construção, inspirado nas pinturas mostradas por Jeunet, Delbonnel
se utiliza muito da luz amarelada para realizar esse contraponto com o vermelho
e o verde. Em algumas cenas, pode-se ver
que, para além do âmbar base para todas as cenas, ainda são usados alguns
abajures que fazem pequenos pontos de luz no quadro.
Esses pontos de luz, além de ambientar, destacam elementos importante,
objetos cênicos como fotos, por exemplo. O filme se importa muito em construir
quem são as personagens a partir de suas memórias e guia, muitas vezes, o olhar
do espectador através da luz. Essa intenção de Delbonnel foi descrita pelo
autor Jon Fusco (2016) como “ blitzes of light and color”, ou seja, explosões de luz
e cor, o que foi considerado por Fusco uma marca do diretor de fotografia.É essa combinação do que expor com sua iluminação e como ele dispõe das suas cores preferenciais que resultam num potente trabalho de direção de fotografia.
Debolnnel também consegue difundir bem a luz, trazendo uma textura
leitosa para imagem. Algo que pode-se ver recorrente em seus outros trabalhos. Há
pouca sombra nas cenas e, nos locais onde acontece as ações principais do
plano, não há sombra alguma. O efeito é uma imagem uniforme que, mais uma vez,
destaca a fuga do realismo. Em Amélie, principalmente, os planos são como
pinturas realizadas meticulosamente. O efeito de difusão da luz reforça a
habilidade do uso tanto de refletores quanto de rebatedores e difusores.
Paleta de cores de Amélie Poulain. Imagem: Pinterest. |
O contraste mais alto também cria uma textura na imagem, trazendo uma sensação de que os tons de preto possuem uma trama aveludada. “This soft light is matched with a velvet contrast that is achieved after Delbonnel creates a uniform patina over the image.”, diz Fusco (2016). Dessa maneira, o diretor de fotografia consegue atingir o que é muito citado pelos espectadores, a luz quente no rosto das personagens, destacando suas feições do resto do plano. Esse visual aparece poucas vezes de maneira diferente.
Na
casa do amigo pintor de Amélie, por exemplo, há quase que uma separação do
resto da casa de onde ele escolhe para ser o local onde realiza suas pinturas.
Quase no resto da casa inteira, há uma luz que parece ser fluorescente,
esverdeada, quase sem vida, sem saturação, podendo remeter a sua doença, ao seu
estado triste de solidão. Mas, o que mantém ele ainda perto da vida, suas
pinturas, tem a mesma textura, luz e cores do resto do filme, talvez de maneira
ainda mais forte.
A articulação entre a pintura e o trabalho de direção de fotografia no filme. |
Além do minucioso trabalho de iluminação e cores há um outro elemento que se destaca na fotografia de Amélie Poulain: os movimentos de câmera. Enérgico e passional, como sua personagem, os movimentos traduzem sentimentos da protagonista e a maneira como a mesma vê o mundo, quase nunca de forma estática, somente nos momentos de contemplação, de reflexão dela. Quase como se Poulain olhasse um tempo para o mundo, o observasse e depois, de maneira ansiosa, tentasse o abarcar, tentando afetar positivamente a vida de seus conhecidos.
O longa evita o uso excessivo de cortes para mostrar o que acontece em
cena e, muitas vezes, usa de movimentos de pans
e travellings para revelar objetos e
personagens, tendo um cuidado interessante na disposição e organização do mise en scène. As pans são usadas em momentos que fazem crescer cenas cômicas ou
criando contraponto de ações. No Deux
Moulins, restaurante onde Poulain trabalha, vemos as personagens sendo
apresentadas. A câmera passeia pelo local, dando uma sensação de que estamos
adentrando no universo de Amélie, esse lugar onde cada pessoa tem relevância,
cada coadjuvante possui características específicas, elementos que os destacam.
Amélie no restaurante Deux Moulins. |
Há um outro recurso que faz o espectador poder sentir que está caminhando pelas ruas de Paris, vendo o mundo junto com a protagonista, o uso da grua. De forma alguma de maneira gratuita, a grua acompanha esse olhar da personagem principal, traduz o que a mesma está vendo e sentindo e unido à trilha, esses movimentos fazem uma viagem, com rota bem definida. Essa ferramenta também aponta a solidão dela, uma vez que a grua exibe sempre a imensidão da cidade, da estação de trem, sempre com Amélie pequena, envolta nesse passeio meio que perdido, meio que solitário.
Amélie em suas passagens pelas estações de trem. |
Delbonnel utiliza também bastante lentes grande angulares. Em alguns momentos, o uso traduz a peculiaridade das personagens, vistas por Amélie, são estranhas, cheia de particularidade e características. Esses serem que povoam o entorno da protagonista aparecem distorcidos, estranhos. São vidas áridas, difíceis, mas que são vistas de forma menos triste quando mostradas com uma visão fantasiosa. A lente é mais um elemento que traz essa sensação, inserindo um tom melancólico para o longa. Santana e Storoz (2015) dizem: “Delbonnel consegue guiar o olhar do espectador para seus personagens caricatos de um jeito natural, utilizando-se também de lentes grande angulares para adicionar o surrealismo tão característico nas comédias românticas francesas, e assim também centralizar e acentuar o isolamento emocional de Amélie Poulain com o ambiente e pessoas ao seu redor.”.
Após discorrer sobre as características do filme, destacamos que as
mesmas não se esgotam somente nesses elementos. Buscamos trazer, de maneira panorâmica, elementos que saltam aos olhos na obra e que
proporcionaram o reconhecimento do longa e seu permanente valor para a
discussão da fotografia. Outros fatores poderiam ser citado e destrinchados
como: a simetria dos planos, o uso de planos que demonstram a inferioridade ou
superioridade de personagens a partir da localização de cada uma delas no
quadro, a utilização de “chicotes” para reforço cômico e dinamicidade das
cenas, etc.
Fontes:
EBERT, Carlos. Cor e cinematografia. 2010.
FUSCO, Jon. The Technique and Dreamlike Practices
of DP Bruno Delbonnel, Ago. 2016. Disponível em: https://nofilmschool.com/2016/08/dp-bruno-delbonnel
Santana &
Storoz. Cinema: A fabulosa fotografia de Amélie Poulain. 21 set. 2015. Disponível em: https://santanaestorozfotografia.wordpress.com/2015/09/21/cinema-a-fabulosa-fotografia-de-amelie-poulain/
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