Aguardado com grande expectativa pelos fãs do terror, Doutor Sono tem como"sombra" uma das maiores obras do cinema, O Iluminado de Stanley Kubrick. Também baseado em um romance de Stephen King, o longa roteirizado e dirigido por Mike Flanagan, habituado com o universo do escritor depois de ter conduzido recentemente Jogo Perigoso para a Netflix, é uma continuação dos eventos de O Iluminado.
O filme de Flanagan se sai bem dessa "roubada" ao não se deixa intimidar pelo passado, mas também respeitá-lo e reverenciá-lo sem exageros, entregando ainda um filme que, na maior parte das vezes, é consistente. Sabiamente, Doutor Sono se interessa mais em ser uma adaptação do romance homônimo de Stephen King do que em ter como espelho O Iluminado de Stanley Kubrick, algo que poderia lhe trazer sérios problemas. Esse é o "salto" primeiro do filme.
Em Doutor Sono, Ewan McGregor interpreta a versão madura Danny Torrance, um homem repleto de traumas ainda a serem superados. Os caminhos de Danny se cruzam com o da garota Abra, que, assim como ele, tem recorrentes visões, um elo muito potente com o sobrenatural. Danny encara a assustadora lembrança do seu pai quando Abra começa a ser perseguida por Rose, a líder de um bando maligno que se alimenta de humanos.
Uma das qualidades do trabalho de Flanagan em Doutor Sono é a maneira como ele entende ser necessário desenvolver gradualmente sua trama e seus personagens, sem forçação ou pressa. O filme nos apresenta primeiro Danny assimilando os eventos vivenciados no Overlook com seu pai e se tornando um adulto acuado, apegado a vícios, para, em seguida, fazê-lo encontrar formas de colocar a sua vida nos eixos. Também somos introduzidos à menina Abra, as manifestações do seu dom sobrenatural dentro de casa e a dificuldade que seus pais têm para lidar com o assunto. Por fim, Doutor Sono nos introduz Rose, uma manifestação maligna que traz para a sua órbita um grupo de seguidores obcecados pela vida eterna. A maneira como Flanagan explora cada um desses pontos da sua trama, construindo "terrenos", fazendo economia do clímax, conduzindo passo a passo o destino dos seus personagens até suas vidas entrelaçarem-se é exemplar.
O filme tem como alicerce a interpretação de Ewan McGregor, ótimo na maneira econômica com a qual emula em grau mais elevado a introspecção do Danny que conhecemos em O Iluminado. Adulto, o Danny de McGregor é um sujeito avesso a protagonismos sociais, não quer ser notado. É um homem cheio de sequelas dos eventos que já conhecemos e que teme qualquer tipo de enfrentamento público dessas questões, preferindo o isolamento aos riscos do convívio social.
A qualidade da performance sutil, complexa e quieta de McGregor contrasta com a interpretação de Rebecca Ferguson como Rose. Claro que a personagem da atriz acaba não sendo o grande vilão do filme, se mostrando apenas como um obstáculo que Danny Torrance encontra pelo caminho para enfrentar o seu verdadeiro algoz, os medos que cultiva na sua psiquê. No entanto, como durante boa parte do longa Rose é o mal a ser combatido na jornada do protagonista, essa cruzada perde um pouco do seu impacto na medida em que Ferguson não transmite autoridade e o senso de perigo necessários a sua personagem. A atriz não consegue contornar as limitações físicas que não estão a seu favor, como seus traços delicados e sua juventude, interpretando Rose com unidimensionalidade através de "caras e bocas" de ira. Não chega a ser algo que compromete severamente o filme, mas traz impactos consideráveis na atmosfera de horror da trama.
Na medida em que a história avança, Doutor Sono deixa claro como toda a trama em torno da perseguição de Rose e seu bando a Abra é um motivo para fazer com que Danny encare seus traumas de infância, um tema recorrente na obra de King. Doutor Sono acaba sendo um longa sobre esse personagem e sobre sua redenção a partir do instante em que ele consegue compreender a necessidade de contornar os anos de repressão a sua espontaneidade infantil.
Por anos, Danny encarou sua "iluminação" como algo contra o qual precisava combater ou conter. A partir do instante em que o personagem compreende que a melhor forma de lidar com suas manifestações é através do acolhimento daquilo que antes lhe parecia assustador. Essa reescrita da história de Danny e sua redenção é vivenciada também pela menina Abra que encontra uma forma de não repetir a história do amigo, se aceitando e compreendendo a "iluminação" como um traço de si e não uma maldição.
Por anos, Danny encarou sua "iluminação" como algo contra o qual precisava combater ou conter. A partir do instante em que o personagem compreende que a melhor forma de lidar com suas manifestações é através do acolhimento daquilo que antes lhe parecia assustador. Essa reescrita da história de Danny e sua redenção é vivenciada também pela menina Abra que encontra uma forma de não repetir a história do amigo, se aceitando e compreendendo a "iluminação" como um traço de si e não uma maldição.
Doctor Sleep, 2019. Dir.: Mike Flanagan. Roteiro: Mike Flanagan. Elenco: Ewan McGregor, Rebecca Ferguson, Kyliegh Curran, Carel Struycken, Carl Lumbly, Emily Alyn Lind, Cliff Curtis, Zahn McClarnon, Bruce Greenwood, Jacob Tremblay. Warner, 151 min.
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