Por Klaus Hastenreiter
“Em toda minha vida, eu nem sabia se existia”. Cercado em meio ao turbilhão dos anos 80, pelo cinema e programas de televisão, pela ostentação dos grandes nomes de Gotham City e a desigualdade proporcionada pelo capitalismo da cidade grande, é apenas natural a observação de Arthur Fleck, o protagonista de Coringa. Sua busca por uma identidade, em uma vida marcada por abuso e fracasso, é construída nos moldes de uma verdadeira jornada do herói, distorcendo os valores oferecidos por uma sociedade organizada em ações puramente caóticas.
É através do caos, dos eventos aleatórios, que surge o alter ego de
Fleck, o Coringa. Seu processo de transformação é o foco principal do longa, em
um movimento de ruptura com os bons costumes e a hipocrisia para atingir o ápice
de seu potencial. Como um exemplo bastante eficaz de estudo de personagem,
alguns elementos, como o corpo de Joaquin Phoenix, esquelético e pálido,
revelam o interior de um homem doente que precisa chegar no limite de sua
humanidade para se encontrar. Em contraste, os olhares doces e os sorrisos
inocentes de Arthur, em meio a uma cidade feia e suja como Gotham, nos
apresentam um lado ingênuo do palhaço.
Puro como um pierrot descobrindo seus primeiros passos de dança, uma
cena se destaca em meio a tamanha violência que irá pesar sob o desenrolar do
filme. Em um banheiro público imundo, onde mal consegue-se enxergar com nitidez
seu reflexo no espelho, Arthur finalmente relaxa seu corpo constantemente
retraído, em uma dança expansiva e libertadora. Como se finalmente conseguisse
se tornar o maestro de seu próprio destino, Fleck, após cometer seus primeiros
assassinatos, estava a um passo de se tornar o Palhaço do Crime. O Coringa, a
carta do baralho que não tem naipe e nem número, investe no protagonista a liberdade
de ser o que ele quiser ser dentro do caótico baralho da cidade de Gotham.
Enquanto Heath Ledger em 2008, em Batman: O Cavaleiro das Trevas, buscou em
figuras underground do rock e em perfis psicopatas para construir seu Coringa,
Joaquin Phoenix investiga na própria arte da palhaçaria os elementos físicos e
psicológicos de sua versão. Sua forma apaixonada de ver o mundo a sua volta,
com olhos bem abertos e reações quase expressionistas aos absurdos que o
rodeia, dá um caráter de sonhador desregulado ao personagem. Os tons mais
saturados de seu figurino, que agora traz o vermelho e o amarelo para seu
paletó, não apenas traçam a ligação direta com as cores vivas do palhaço
contemporâneo, mas auxilia de forma eficaz na construção de uma personalidade
própria, expansiva e dissonante à violência inerente do Coringa.
E é interessante notar a escolha de Todd Phillips para a cadeira da
direção do projeto. Atrelado ao filme desde o início de sua concepção, Philips,
diretor conhecido por comédias como Se Beber não case e Um Parto de Viagem,
transita bem entre os gêneros que Coringa se esbarra. Sua atmosfera e estilo
de ritmo e enquadramento nos remete ao filme de crime dos anos 70, a Scorcese e
as ruas imundas da Nova York de Taxi Driver (sendo o próprio Arthur Fleck um
reflexo da mesma sociedade que produziu Travis), enquanto o caos de algumas de
suas escolhas narrativas nos transporta para a comédia de erros dos irmãos Coen
(o humor “pesado” já trabalhado por Philips em seus filmes anteriores). Coringa, mesmo sendo uma amalgama de filmes já consagrados pelo imaginário
universal, consegue atingir a difícil tarefa de conquistar uma personalidade
muito própria e autoral através do respeito e delicadeza como filma seu
protagonista.
Prazeroso e desconfortável, embebido por diversas contradições
humanas, Coringa nega toda a pretensão megalomaníaca dos títulos baseados em
quadrinhos para fazer uma verdadeira graphic novel cinematográfica. O interesse
aqui não é contar a história do vilão do Batman, mas construir a narrativa do
homem que quer e precisa ser ouvido, dos excluídos e marginalizados que não
terão seus rostos celebrados na TV, dos “palhaços” que sustentam a pirâmide
capitalista e que, ao serem colocados neste lugar, serão capazes de fazer
desmoronar através do caos. Tudo isso, com um belo sorriso pintado no rosto.
Joker, 2019. Dir.: Todd Phillips. Roteiro: Todd Phillips e Scott Silver. Elenco: Joaquin Phoenix, Robert DeNiro, Zazie Beetz, Frances Conroy, Brett Cullen, Shea Whigham, Bill Camp, Glenn Fleshler, Leigh Gill, Josh Pais. Warner, 121 min.
Assista ao trailer:
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