Inúmeras adaptações do conto Branca de Neve já ganharam as telas. No entanto, a diretora Anne Fontaine talvez tenha realizado uma das mais inusitadas delas com Branca como a Neve, uma leitura contemporânea do conto de fadas. Primeiro, é importante que o espectador embarque na proposta de Fontaine, que não tem urgência alguma em extrair significações sociais a partir do seu conto, nem de longe Branca como a Neve pretende ser uma narrativa realista. Nesse sentido, é determinante que o público entenda que está em contato com um filme no qual a própria Fontaine não se leva a sério, soando a todo instante como uma história que tem consciência dos absurdos elementos da sua trama, dos traços unidimensionais das suas personagens e da sua verve novelesca. Tudo é propositalmente afetado, cafona e comicamente sexualizado.
Em Branca como a Neve, Fontaine acompanha a dinâmica familiar da jovem Claire e sua madrasta Maud. Tomada pela inveja da juventude e beleza da enteada, Maud sequestra Claire e a deixa numa floresta, onde é descoberta por gêmeos que moram isolados em um casebre. Logo, Claire se adapta à vida afastada da cidade grande fazendo amizade com os homens da região, que magneticamente são atraídos pelo entusiasmo da garota com a vida. Assim que fica sabendo do paradeiro de Claire, Maud vai ao seu encontro para concluir o seu plano macabro.
Em Branca como a Neve, Fontaine faz uma versão do conto repleta de malícia sexual nas relações que giram em torno de Claire, aquela que ela estabelece com a madrasta e também a que vive com as versões dos anões. Fontaine tem plena consciência da superficialidade e, sobretudo dos excessos de sua história. A cineasta não tem pudores no desenvolvimento da ninfomania de Claire e na maneira como ela brinca com os humores dos rapazes que a protegem no bosque, assim como não se contém ao retratar sua madrasta má como uma mulher perversa prestes a explodir. A personagem de Huppert é esquisita, sobretudo por aparentar estar sempre reprimindo seus desejos pela enteada, o que faz o longa ter sugestões homoeróticas, e seus sentimentos, há uma raiva e inveja abafadas. Fontaine olha com malícia debochada para essas personagens.
A cineasta conta com a presença magnética de Lou de Laâge como a protagonista Claire, linda, quase que hipnótica em cada frame, conferindo um tom adequado de Lolita a uma personagem que tem completa consciência do poder que exerce sobre os demais. Huppert, por sua vez, vive ótimos momentos como a vilã desse conto contemporâneo, uma mulher tensa por natureza, com intenções canastronas de cometer os atos mais diabólicos. Há também ótimas participações como Benoit Poelvoorde vivendo um livreiro, Damien Bonnard como os gêmeos e Vincent Macaige como um tímido violinista, todos representações dos anões do conto original.
Com Branca como a Neve, Anne Fontaine ri da malícia com o conto de fadas. Sem grandes pretensões na adaptação de uma das histórias mais conhecidas em todo o mundo, a cineasta demonstra um despojamento curioso, rindo de si e dos seus personagens, com seus ótimos atores. Sem dúvida, filme escancarada e conscientemente camp.
Blanche comme Naige, 2019. Dir.: Anne Fontaine. Roteiro: Anne Fontaine, Claire Barré e Pascal Bonitzer. Elenco: Lou de Laâge, Isabelle Huppert, Benoit Poelvoorde, Damien Bonnard, Jonathan Coen, Pablo Pauly, Vincent Macaigne, Charles Berling, Laurent Korcia, Richard Frechette, Aurore Broutin. A2 Filmes, 112 min.
Assista ao trailer:
COMENTÁRIOS