por Klaus Hastenreiter
Já em seus créditos iniciais, Bacurau, novo filme escrito e dirigido por Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho, revela musicalmente a chave para a compreensão de sua proposta. “Eu vou fazer uma canção pra ela, uma canção singela, brasileira” diz a letra de Caetano Veloso pela voz de Gal Costa, mostrando desde o início da projeção o caráter pessoal de sua obra. A tal “canção brasileira”, o filme a ser exibido, é um manifesto sobre a cultura brasileira e as relações estranhas que ela desperta num contexto internacional extremamente opressor.
A cidade de Bacurau é
transposta para tela como um resquício de humanidade em um futuro próximo,
guardada por personagens orgulhosos por representar o que há de mais tradicional
e típico do interior do nordeste. Bacurau é uma cidade de resistência, que
avança pelo tempo com o progresso das inclusões identitárias, étnicas e
sexuais, e ao mesmo tempo finca o pé em suas origens culturais. Uma sociedade
alternativa que desafia a capacidade do capital estrangeiro de apagar sua
existência do mapa, de ignorar sua História e pasteurizar seu estilo de vida
por uma globalização unilateral. Bacurau é a luta do nordeste brasileiro para
se manter vivo.
O longa lida com a seriedade
do contexto social de maneira respeitosa, mas sem perder a oportunidade de
criar ironia em gags visuais e na construção de diálogos divertidos. Em
determinado momento, a carioca Maria, personagem de Karine Telles, após
explanar sobre a superioridade do sudeste brasileiro em relação ao nordeste,
destacando a cor branca de sua pele, é questionada por um estadunidense.“Você é branca?” pergunta o rapaz, ao segurar
um par de binóculos em direção ao rosto de Maria ao seu lado. A relação de poder é ridicularizada através de
um novo referencial hierarquicamente superior na "cadeia alimentar" capitalista,
e com o tempo os próprios clichês do cinema “americano” são utilizados em favor desse pastiche.
O estilo do filme transita de
maneira fluida entre o western, adaptando o velho oeste estadunidense para o
interior brasileiro, e a ficção científica futurista, distópica e ao mesmo
tempo coerente com nossa política atual. A tensão criada para dar peso aos
conflitos estabelecidos em tela se pautam em um uso sábio do zoom, direcionando
a visão do espectador para detalhes em cena, ao mesmo tempo em que dilata suas ações
na criação de suspense. O uso de movimentos panorâmicos velozes, “chicotes”, também saltam em tela
positivamente, destacando mudanças de rumo dentro de uma narrativa inquietante
e surpreendente.
A montagem de Eduardo Serrano
(Divino Amor, Aquarius), auxilia na construção do tempo particular desse
local “ficcionalmente realista”, alternando entre o corte naturalista, quase que
documental, e a brincadeira de inserir transições criativas. Destaque para uma
transição específica, onde um plano se revela lateralmente de forma gradativa
até sobrepor por completo seu anterior, utilizado repetidas vezes tanto em Bacurau quanto na saga Star Wars, ressaltando novamente o jogo ficcional
aqui elaborado.
Há também uma interessante
estilização da violência de forte influência no cinema estadunidense dos anos
70. Sem perder o caráter nacionalista da
obra, o longa brinca com um estilo autoral de gênero que começa em Martin
Scorsese e vai até a contemporaneidade com Quentin Tarantino. Desse último, a
cinefilia também se torna uma grande referência, e o filme não se priva de
fazer ligações visuais e sonoras a gêneros como crime e terror, inclusive
reutilizando por completa uma faixa musical original do filme A Bruma Assassina em sua banda sonora.
Como “um objeto não
identificado”, Bacurau é uma carta apaixonada para a cultura nacional,
singela como uma canção de amor e brasileira de corpo e alma. Um filme
catártico, que explora com sabedoria escolhas estilisticas extremamente
chamativas sem perder a pureza de seu conteúdo. “Minha paixão há de brilhar na
noite… No céu de uma cidade do interior”, diz a letra de Caetano, prenunciando
o poder de um filme icônico que irá brilhar no céu junto aos grandes clássicos
do Cinema Brasileiro, orgulhoso de suas raízes nordestinas e capaz de resistir
às chuvas de balas do western da vida real.
Bacurau, 2019. Dir.: Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Roteiro: Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Elenco: Barbara Colen, Sônia Braga, Udo Kier, Karine Teles, Chris Doubek, Alli Willow, Jonny Mars, Antonio Saboia, Thomas Aquino, Julia Marie Peterson. Vitrine Filmes, 131 min.
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