Estreando no circuito comercial após fazer boa impressão no Festival de Cannes, Dor e Glória é o mais recente feito de Pedro Almodóvar. E um feito e tanto! O cineasta retorna após duas obras de repercussão média e baixa, Julieta e Os Amantes Passageiros, num longa escancaradamente autobiográfico, no "lugar comum" das comparações, o 8 e 1/2 da sua carreira. Dor e Glória revisita a infância do cineasta e sua maturidade, quando passa por uma crise profissional, através da vida de Salvador Mallo, cineasta encarnado por Antonio Banderas, que, pelo papel, recebeu o prêmio de melhor ator em Cannes.
Dor e Glória tem um tom metalinguístico, podendo ser encarado como um filme no qual Almodóvar faz um inventário do seu próprio cinema, suas inspirações marcadas em sua biografia, como as mulheres que inspiraram suas protagonistas, claramente as matriarcas que assumem características da sua mãe, interpretadas em períodos e circunstâncias diferentes pelas ótimas Penélope Cruz e Julieta Serrano. Dor e Glória também é um longa no qual Almodóvar trata da relação com sua obra, sua sexualidade e seus altos e baixos emocionais.
Olhando por cima, pode parecer mais do Almodóvar de sempre e é natural que ele seja assim. Como um longa que procura lançar uma reflexão sobre o próprio universo de inspirações do cineasta pode ser ausente de traços característicos dos seus filmes como seu apego ao melodrama, a vivacidade dos seus figurinos e direção de arte e seu mergulho no queer? Assistir a um filme de Almodóvar é sempre como se comprássemos esse pacote completo (aliás, como todo dito "cinema de autor"). Dor e Glória é uma autêntica cria do cineasta, não escapa do seu DNA.
O que acaba se tornando mais interessante na recente obra do diretor é a ficcionalização de eventos da sua própria vida. Afinal é isso que o cinema faz quando se apropria da realidade. A vida real assumindo uma outra versão de si quando vai para as telas, com mais cores, aspectos de personagens mais realçados e eventos comuns que ganham dramaticidade. É isso que é percebido no contraste do tom da interpretação de Cruz e Serrano, que vivem variações completamente distintas de uma mesma Jacinta, uma cria da ficção e outra de uma realidade (que nada mais é do que a vida do próprio cineasta nos tons vibrantes de sua ficção cinematográfica, ou seja, outra ficção). Da mesma maneira, Antonio Banderas vive com Salvador Mallo a visão que Almodóvar tem de si, não necessariamente ele, mas uma leitura particular dele.
Há em Dor e Glória obras sobrepostas. Almodóvar escala duas figuras representativas na sua carreira como Antonio Banderas e Penélope Cruz para interpretarem figuras constantes nos seus filmes. Cecilia Roth que logo no início surge como uma atriz amiga de longa data de Salvador e Asier Etxeandia vivendo uma versão do próprio Banderas também são detalhes interessantes do filme que sobrepõem leituras interessantes sobre a biografia do artista.
Essas camadas de Dor e Glória dão vivacidade e se transformam numa das maiores belezas e contribuições do longa para a maturidade de Almodóvar, que não olha para si como um grande gênio, terreno fácil da maior parte dos cineastas que fazem filmes tão metalinguísticos quanto ele. Em Dor e Glória, Almodóvar olha para si como alguém comum com sua vivência, repertório, defeitos e até um pouco em suas manias de homem vivido.
Dolor y Gloria, 2019. Dir.: Pedro Almodóvar. Roteiro: Pedro Almodóvar. Elenco: Antonio Banderas, Penélope Cruz, Asier Etxeandia, Leonardo Sbaraglia, Julieta Serrano, Nora Navas, Asier Flores, Rosalía, Eva Martín, Julián López. Universal, 113 min.
Assista ao trailer:
COMENTÁRIOS