Os 'Nós' que amarram os Estados Unidos da América sob a ótica de Jordan Peele


por Klaus Hastenreiter

Após fazer história em 2018 ao vencer o prêmio de melhor roteiro original no Oscar por um filme de terror (Corra!), o diretor Jordan Peele segue em sua trajetória pelo gênero em contos sociais carregados de signos políticos, costurados por uma linha densa e aterrorizante no filme Nós. Seu traço autoral é embebido de uma cinefilia vasta, perceptível por escolhas criativas de enquadramentos e movimentos de câmera, sem qualquer pudor ou receio que se faça excessivamente “cafona”. Assim como em Corra!, há uma atmosfera que mistura o perigo eminente com a sedução de imagens plasticamente deslumbrantes, proporcionando uma experiência ambígua e difícil de se manter apático.

Se em Corra! o grande monstro era tematicamente sugerido como o racismo da sociedade estadunidense, delimitando muito bem suas alegorias e símbolos que nos remetem diretamente à realidade local, em Nós temos aqui como grande questionamento central a identidade deste mesmo país. Com seu título original Us, Peele brinca com um trocadilho perverso que indica o potencial monstruoso de uma população estranha em sua noção de união. Us deixa então de ser uma simples tradução de Nós, mas se torna a sigla do país mais poderoso do planeta, os United States, que esparrama em tela as cores de sua bandeira vermelha e azul, seja nos figurinos de seus personagens ou nas escolhas de luz, o sangue e a frieza com a qual a tal civilização “americana” foi construída.

Brevemente e em tempo, Nós conta a história de uma família que se vê aterrorizada por um grupo de pessoas idênticas a elas mesmas, com intuito de as substituir através de um descarte sangrento de suas versões originais. Em determinado momento, a versão usurpadora da protagonista vivida por Lupita N’yongo é questionada sobre a origem desta família de duplos. “Somos Americanos”, responde sua cópia, revelando então a genética temática do filme. Fica então estabelecida a crítica à hipocrisia social de um grupo de pessoas que se despe de sua personalidade, seus instintos e essência para se tornarem parte de algo maior, relegando tudo que não combina com a ideologia “americana” ao porão de seu próprio subconsciente.



E ao transbordar inevitável dessa personalidade sufocada, nasce o terror, trabalhado pela direção do filme de forma homeopática, sem pressa de querer assustar seus espectadores. O cuidado na criação de uma trilha dissonante, personalizada, marcada por vocalizes perturbadores que mais uma vez nos remete a noção de agrupamento social distorcido, auxilia a mão do diretor na gênese de uma atmosfera horripilante. O corte aqui é cuidado para não roubar do espectador a oportunidade de fruir cada plano, e ao investir em uma mise-en-scene dinâmica e criativa, o ritmo não se perde possíveis variações maçantes. Essa montagem cuidadosa e equilibrada é tão competente na criação de um suspense constante e na provocação de uma sensação de que algo ruim está por vir quanto na ironia e comicidade, permitindo que o texto de seus personagens sejam diversas vezes acompanhados com algum comentário visual por parte da justaposição de planos.
Com tantos elementos visuais a serem exaltados, o roteiro acaba recebendo a vantagem de parecer mais interessante do que verdadeiramente é. Ele tem o mérito de ser redondo e bem amarrado em relação aos elementos expostos, sempre nos remetendo através de símbolos e situações alguns dos temas inseridos em seu primeiro ato para assim garantir uma ótima satisfação para o público que se debruça no jogo de deduções cinematográficas. Porém, ao investir parte dos seus esforços em um universo alegórico para construir seu comentário social, Peele parece abandonar alguns dessas noções em seu terceiro ato em prol da engenharia narrativa de seu suspense. A elegância do seu discurso dá lugar então a uma série de conveniências e diálogos demasiadamente expositivos para criar um clímax surpreendente, onde a preocupação com o espetáculo se faz prioritário em relação ao comprometimento com a coerência de seu discurso.
Mas, em hipótese alguma, esses possíveis deslizes fazem de Nós um trabalho desonesto por parte do realizador. Entre suas pistas e referências, se marca fortemente a noção de que lidar com o medo sensorial é a grande prioridade de seu trabalho, que se dedica a entregar uma experiência diferenciada e bastante proveitosa, e nisso, já está mais do que comprovado seu enorme potencial.


Us, 2019. Dir.: Jordan Peele. Roteiro: Jordan Peele. Elenco: Lupita Nyong'o, Winston Duke, Elisabeth Moss, Tim Heidecker, Madison Curry, Shahadi Wright Joseph, Evan Alex,  Yahya Abdul-Mateen II, Anna Diop, Cali Sheldon, Noelle Sheldon. Universal, 116 min. 

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Os 'Nós' que amarram os Estados Unidos da América sob a ótica de Jordan Peele
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