A princípio, o documentário Deixando Neverland, que saiu do recente Festival de Sundance com muitos elogios da crítica, mas também cheio de inevitáveis polêmicas, parece ferir uma das regras centrais do jornalismo e até mesmo da produção cinematográfica documental. O filme dividido em duas partes pelo diretor Dan Reed se interessa apenas pelos depoimentos dos homens que afirmam ter sofrido abuso sexual de Michael Jackson, astro do pop falecido há 10 anos, quando eram crianças e das suas respectivas famílias.
A preferência de Reed por um dos lados da história é até amenizada pela presença de imagens de arquivo de Michael, sua defesa por acusações semelhantes e as declarações dos seus advogados. Reed também tem como justificativa da sua escolha o argumento de que durante toda a sua vida, Jackson teve espaço na mídia para se defender e obteve a acolhida dos seus fãs e do público em geral, enquanto suas alegadas vítimas tiveram muito pouco espaço, com suas palavras sempre levadas a descrédito.
De maneira bem clara, Deixando Neverland é honesto a respeito do lado que assume no conflito e fica com as versões de Wade Robson e Jimmy Safechuck para aquilo que acontecia entre quatro paredes quando os garotos, então com 7 e 10 anos, começaram a se relacionar de maneira mais íntima com Jackson e até dormir no mesmo quarto do cantor. O documentário dá voz ao outro lado do conflito, se interessando mais pela vida dos garotos antes, durante e depois da experiência de fama que tiveram ao lado de Jackson e como eles e suas famílias, especialmente suas respectivas mães, passaram pelo processo de compreensão do abuso que alegam ter sofrido na época atravessando etapas emocionais duras como o sentimento de rejeição, raiva, culpa, a depressão no princípio da vida adulta e a libertação pessoal quando começaram a falar dos traumas que a vivência sexual precoce com um adulto trouxeram para suas vidas e relações.
O documentário em exibição pela HBO assume uma estrutura burocrática, baseada em depoimentos e imagens de arquivo construindo uma linha narrativa ordenada por uma cronologia natural dos eventos. Entretanto o que garante a singularidade do material é a maneira como Reed aborda os casos, aproximando-se gradualmente da vivência de Robson e Safechuck, tornando seu filme um longa sobre consequências legadas pelo abuso sexual infantil na vida adulta, enfim, como a experiência no rancho Neverland com Jackson afetou a vida dos dois rapazes.
É claro que o inevitável caráter de suite jornalística de Deixando Neverland não deixa de transformá-lo em mais um documentário cuja fama é construída na mitologia de Michael Jackson. Entretanto, é importante que essa outra versão da história ganhe protagonismo mesmo que dez anos depois da morte do cantor, ou melhor, sobretudo porque já se passou tanto tempo. O lapso temporal dimensiona como fatores como a fama monumental do astro e a própria assimilação de um eventual trauma por pessoas vítimas desse tipo de abuso são empecilhos para que a verdade venha à luz. Possivelmente estejamos próximos dela ou então nunca saberemos o que de fato ocorreu. O que fica claro é que, dada as proporções dos acontecimentos, nossa época e como tudo fora espetacularizado enquanto Jackson estava vivo, descreditando inclusive dois garotos que denunciaram o astro e o levaram à corte sem sucesso, é justo que o outro lado do conflito tenha vez no protagonismo da "polêmica".
Leaving Neverland, 2019. Dir.: Dan Reed. Documentário. Em exibição na programação dos canais HBO, 240 min (duas partes).
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