Entre as correntes cinebiografias que tomam conta das programações do cinema a cada temporada, Bohemian Rhapsody possui cacoetes passíveis de detecção por qualquer espectador que já tenha visto alguma produção do gênero nos últimos anos. A trajetória de Freddie Mercury, da formação do Queen até sua lendária apresentação em 1985 no Live Aid, festival de música realizado para arrecadar fundos no combate à fome na Etiópia, traça a jornada do seu protagonista em ordem cronológica, obedecendo a uma sucessão de fatos "wikipédicos" que por vezes não conseguem tratar com profundidade algumas passagens da vida do seu biografado tampouco dar corpo ao projeto como um denso estudo de personagem. Entretanto, há diversos pontos positivos no longa que compensam esta falta e suprem o desafio de retratar Freddie Mercury nas telas muito bem e é sobre esses aspectos que iremos enfocar.
Marcado por uma produção problemática, que envolveu a demissão do seu diretor Bryan Singer no meio das filmagens do longa (o diretor começou faltando nos sets, depois alegou afastamento por problemas familiares até começarem a circular boatos de que tudo estaria vinculado com o seu envolvimento em acusações de assédio ao longo da sua carreira), Bohemian Rhapsody é um filme que não exibe o menor vestígio desse caos em sua narrativa. Singer foi substituído em alguns momentos pelo diretor de fotografia Newton Thomas Siegel ou por Dexter Fletcher, diretor de Voando Alto e da biografia de Elton John Rocketman, que estreará em 2019. Ao contrário do que acontece nesses casos, Bohemian Rhapsody não dá muitas pistas de ser um filme "picotado", obra da mão de vários realizadores, surgindo como uma biografia coesa sobre seu protagonista.
O texto de Anthony McCarten pode não ser muito inspirado, não se aprofundando sobre passagens da vida do seu protagonista numa investigação complexa da sua natureza (talvez sua bissexualidade seja o tema mais aprofundado pelo projeto). Contudo, esta falha nevrálgica do projeto é compensada pela maneira como Bohemian Rhapsody utiliza cada canção do repertório do Queen como forma de dar conta dos diversos estágios da da vida de Mercury, funcionando como um grande musical sobre o artista, oferecendo uma inventiva fusão entre imagens e trilha.
Na pele de Mercury, Rami Malek é um ator que demora a encontrar naturalidade na sua leitura sobre o artista, soando até mesmo caricatural no primeiro ato do filme, quando interpreta o vocalista do Queen na juventude. O estranhamento do público com a chave mimética de interpretação de Malek cai por terra conforme o filme avança e nos habituamos com a voltagem intensa do ator. Sobretudo nas apresentações musicais do Queen, Malek exibe um trabalho de muita entrega que talvez fosse mais regular caso tivesse o suporte da visão precisa de um cineasta, o que não ocorreu.
Assim, Bohemian Rhapsody consegue ser uma cinebiografia que a despeito das "escorregadas", encontra um prumo. É o típico caso no qual a narrativa cinematográfica supera deficiências de roteiro com a energia que outros elementos acabam exibindo na tela, o principal deles o repertório do Queen e como o projeto o utiliza para contar sua história.
Bohemian Rhapsody, 2018. Dir.: Bryan Singer. Roteiro: Anthony McCarten, Elenco: Rami Malek, Lucy Boynton, Ben Hardy, Joseph Mazzello, Mike Myers, Gwilym Lee, Aidan Gillen, Allen Leech, Tom Hollander, Aaron McCusker, Max Bennett. Fox, 134 min.
Assista ao trailer:
COMENTÁRIOS