A assinatura de Terrence Malick à serviço da narrativa em 'Cinzas no Paraíso'


Nos últimos anos, os filmes do cineasta Terrence Malick têm falhado naquilo que poderia ser uma qualidade das suas histórias. Desde A Árvore da Vida de 2011, filme que lhe rendeu a Palma de Ouro em Cannes e uma indicação ao Oscar, o diretor parece empenhado em repetir o mesmo filme com a sua profusão de planos plasticamente bem concebidos por seu parceiro de praxe Emmanuel Lubezki para ilustrar uma trama existencial pretensamente profunda. Foi assim em Amor Pleno de 2012, Cavaleiro de Copas de 2015 e De Canção em Canção de 2017. 

Chega a ser curioso olhar para trás e descobrir em 1978, no seu segundo longa-metragem, um Malick completamente diferente da sua versão contemporânea. Em Cinzas no Paraíso, filme que completa 40 anos de lançamento, Malick consegue preservar as marcas do seu cinema, como o seu apreço por um bom tratamento na fotografia ou a narração em off que conduz o espectador, mas, diferente das suas sucessivas mal empreitadas contemporâneas - e até mesmo divergente de alguns bons títulos da safra pré-A Árvore da Vida -, o longa consegue usar tudo isso em prol da narrativa clássica. 


Cinzas no Paraíso foi o título brasileiro originalmente concebido de Days of  Heaven, posteriormente traduzido para a versão em DVD do filme lançada pela Paramount com a tradução literal Dias de Paraíso. O filme narra a história de dois namorados que vivem de fazer bicos em plena Depressão Americana. Os personagens são interpretados por Richard Gere e Brooke Adams. Para evitar maiores problemas por onde passam eles dizem para todos que são irmãos. As coisas começam a se complicar quando depois de prestarem serviço para um jovem fazendeiro (Sam Shepard) cujo estado de saúde encontra-se bastante debilitado ela é cortejada pelo patrão e os dois encontram na promessa de matrimônio uma oportunidade de vislumbrar uma outra vida. 

Cinzas no Paraíso é completamente narrado por Linda Manz, intérprete da menina que vem a ser a verdadeira irmã do personagem de Gere e que acompanha o casal do início ao fim da trama. Pelos olhos da criança, o inescapavelmente trágico triângulo amoroso tem sua história narrada na tela. 

Como autêntico exemplar da filmografia de Malick, a fotografia é um componente importantíssimo na condução dessa história, existindo planos que preenchem tranquilamente algumas lacunas deixadas propositalmente pelos diálogos entre suas personagens. Num dos momentos mais inspirados, o confronto entre os personagens de Gere e Shepard é acompanhado por uma praga de gafanhotos que destrói toda a plantação da propriedade rural que serve de cenário principal para a história. O trabalho no departamento não é de Lubezky, parceiro atual do realizador, mas do diretor de fotografia Néstor Almendros que preenche o filme de imagens plasticamente irretocável com tonalidades que acompanham as diversas estações (Almendros também foi responsável pela fotografia de A Lagoa Azul e A Escolha de Sofia). 


Contando uma clássica história de encontros e decepções amorosas, Cinzas no Paraíso tem como alicerce um bucólico pedaço de terra que acaba representando uma instância de promessas num período da história do país marcado pela falta de esperanças. A trilha de Ennio Morricone, utilizada exaustivamente em inúmeros trailers desde então, prenuncia esse estado de ilusão e posterior desencanto que Abby (Brooke Adams) proporciona ao fazendeiro de Shepard, mas acaba também dando conta da própria trajetória dela e do seu irmão, momentaneamente conformados na própria fantasia que criaram como forma de sobreviver. 

Quando lançado, Cinzas no Paraíso recebeu quatro indicações ao Oscar (trilha sonora, som, figurino e fotografia), levando o prêmio de melhor fotografia para Néstor Almendros. É dos momentos da carreira de Malick que merecem ser lembrados porque evidencia a potência do cinema do diretor quando ele consegue aliar suas divagações filosóficas sobre a existência com uma trama e personagens bem trabalhados. Talvez, no momento atual, seja a hora de Malick tomar algumas lições valiosíssimas dos primeiros anos de sua trajetória como diretor para, quem sabe, oferecer possibilidades melhores do seu cinema. 


Days of Heaven, 1978. Dir.: Terrence Malick. Roteiro: Terrence Malick. Elenco: Richard Gere, Brooke Adams, Sam Shepard, Linda Manz, Jackie Shultis, Stuart Margolin, Timothy Scott, Doug Kershaw, Richard Libertini. Paramount, 94 min. 

Assista ao trailer: 


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A assinatura de Terrence Malick à serviço da narrativa em 'Cinzas no Paraíso'
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