Retrospectiva Chovendo Sapos (Parte 1): Os primeiros anos, as primeiras escolhas


O ano era 2006 e quando o Chovendo Sapos teve início nem Chovendo Sapos se chamava, éramos Espaço Lumière. O cenário de "conversas" sobre cinema na internet também era outro, o Orkut e o MSN existiam e eram relevantes. No lugar das postagens em Facebook e sua barra de rolagem com centenas de comentários que dão conta das impressões sobre os filmes a partir daquilo que escrevemos num post público em nosso perfil ou numa comunidade cinéfila, o que fazíamos era  visitar o blog do colega e assim criamos uma rede de relacionamento na extinta Sociedade Brasileira de Blogueiros Cinéfilos (SBBC). Atualmente, muitos seguiram seus caminhos em outras atividades e têm a redação sobre filmes (e agora também séries) como hobbies, mas outros acabaram construindo suas trajetórias profissionais em carreiras que se relacionam com a crítica de cinema

Em 2006, também tivemos nossa primeira seleção de melhores do ano, que na época nem se chamava Listão. Foi um ano que vimos Pequena Miss Sunshine, filme que se tornou um xodó e segue intocável pela doçura do olhar para as relações familiares, a infância e as imposições de padrões sociais. Também ficamos impressionados com o realismo proposto por Paul Greengrass em Voo United 93 sobre um 11 de setembro que o mundo inteiro ainda estava assimilando e que o cinema americano explorava  em grande volume, mas vacilante qualidade. Era também um tempo que ainda nos encantávamos com o cinema de Terrence Malick, que uniu sua filosófica poesia visual com eventos importantes na formação da identidade americana em O Novo Mundo. 2006 também foi o ano em que finalmente Martin Scorsese lançou um filme pelo qual levou o Oscar, o drama criminal Os Infiltrados

Todos esses títulos foram importantes na inauguração deste site, mas nossa escolha recaiu sobre Filhos da Esperança de Alfonso Cuarón. Recém saído do universo Harry Potter, Cuarón fez uma  distopia sobre um mundo infertil sem recorrer aos cacoetes das produções recentes voltadas para o público teen. Cuarón teve boas críticas, mas uma trajetória mais silenciosa do que de fato merecia com Filhos da Esperança. O tempo foi justo com o filme de Cuarón que volta e meia sempre está em destaque como um dos longas mais marcantes do seu tempo em algumas listas da mídia especializada. Inaugurar nossa tradicional lista de melhores do ano com um filme de tamanho impacto e à frente do seu próprio cenário de opiniões é motivo de orgulho. Do outro lado, infelizmente um filme sobre um mundo corroído pela falta de esperança e por um estado xenófobo e violento segue extremamente atual. 


Entre as atuações, o pouco conhecido trabalho de Cate Blanchett no indie australiano Sob o Efeito da Água foi uma descoberta de videolocadora. Também elencamos o desempenho de Felicity Huffman que deveria ter vencido o Oscar por Transamérica. Entre as novatas, o desempenho de Q'orianka Kilcher como a Pocahontas de O Novo Mundo me tocou bastante pela sensibilidade e frescor típicos de uma revelação (por sinal, por onde anda Q'orianka Kilcher?). 

Selamos a lista com a escolha de Meryl Streep e sua Miranda Prietsly de O Diabo veste Prada, uma daquelas performances que entra para a história com suas cenas e diálogos. Apesar de sempre ter sido reconhecida como uma das maiores atrizes de sua geração, Streep se transforma num ícone popular nesta comédia sobre os bastidores da moda que revela Emily Blunt (por sinal, foi lembrada como coadjuvante) e mostrou que a carreira de Anne Hathaway poderia seguir sem O Diário de uma Princesa. A Miranda de Streep é uma criação que marca a carreira de uma atriz. 


Ainda tínhamos Philip Seymour Hoffman entre nós e seu desempenho em Capote premiado com o Oscar de melhor ator pôde ser lembrado já que o filme de 2005 só estreou no Brasil no início de 2006. Acompanhávamos Hoffman desde suas parcerias com Paul Thomas Anderson (afinal, nosso site faz referência a uma delas em seu título, Magnólia). O protagonismo de Hoffman em Hollywood finalmente veio com a interpretação do ator para o jornalista Truman Capote no período em que realizou um de seus livros mais importantes com A Sangue Frio. Capote também foi a estreia de Bennett Miller nos cinemas, um nome que surgirá na nossa retrospectiva em outro momento. 

Além de Hoffman, lembramos do ótimo momento de Leonardo DiCaprio no seu segundo longa com Scorsese, Os Infiltrados, numa época em que a discussão girava em torno da sua eventual indicação na temporada de prêmios por este filme ou por Diamante de Sangue (DiCaprio foi lembrado pelo segundo trabalho). Os nomes de Clive Owen de Filhos da Esperança e Christian Bale de O Grande Truque, filme pelo qual sigo nutrindo um sentimento dúbio, também foram lembrados. 


Entre os coadjuvantes, fizemos uma aposta "fora do radar", Mia Kirshner de Dália Negra. Antes do longa do Brian De Palma, já tinha conhecimento sobre o caso brutal do assassinato da jovem atriz Elisabeth Short nos anos 40. Aguardei com grande expectativa esse trabalho do De Palma e apesar de não ser o grande filme que esperava, me impressionei com o que o diretor conseguiu nos seus breves registros da atriz  Mia Kirshner na forma de relatos pessoais de Short para a câmera. Kirshner aparecia muito pouco em Dália Negra,  estrelado por nomes mais célebres como Scarlett Johansson e Hilary Swank, mas os poucos momentos da atriz no longa são marcantes o suficiente. Foi uma escolha em meio a nomes mais "fáceis" como o trabalho de Meryl Streep em A Última Noite, último filme do Robert Altman, Fionnula Flannagan de Transamérica e a própria Blunt que mencionamos parágrafos atrás. 


Em 2006, pudemos lembrar de Jack Nicholson antes da sua aposentadoria por um desempenho com a usual assinatura do ator, Os Infiltrados. Com o hype do filme, apostávamos que a Academia se lembraria de Nicholson pela própria simpatia que sempre teve por sua carreira, algo que não aconteceu. Na sua passagem pelo filme como o perigoso chefão do crime Frank Costello, um dos momentos que garantiram sua escolha aqui, entre tantos no filme de Scorsese, foi seu diálogo marcante com a personagem do DiCaprio sobre ratos, corrupção e política. Outros nomes foram lembrados, como Mark Wahlberg pelo mesmo filme de Nicholson, Kevin Kline de A Última Noite e a dupla Steve Carell e Paul Dano de Pequena Miss Sunshine


No segundo ano do site, quando levantamos nossos filmes preferidos que foram lançados no Brasil em 2007, ficamos divididos entre Ratatouille, um dos trabalhos mais memoráveis da Pixar, e o drama Pecados Íntimos de Todd Field. Era uma época que ainda tinha fôlego para assistir filmes em pré-estreias da madrugada. Parte das escolhas do site no segundo ano vieram dessas sessões, hoje cada vez mais restritas aos títulos da Marvel. 

Pecados Íntimos foi um desses títulos, cuja expectativa nutrimos por anos. Existiu uma preparação para o filme com o livro Criancinhas de Tom Perrotta que serviu de base para o filme. Field vinha com um trabalho discreto em Entre Quatro Paredes, drama que recebeu uma indicação ao Oscar de melhor filme. Pecados Íntimos seguiu a mesma trajetória silenciosa do longa anterior do diretor e até hoje é menos reverenciado do que deveria. 

O drama de Todd Field retrata questões que tomam de assalto um grupo de pais e mães de um subúrbio americano revelando suas inseguranças quase juvenis, sobretudo o medo de perder a liberdade com as amarras da vida cotidiana como filhos, casamento e carreira profissional. É praticamente uma observação antropológica sobre a vida adulta quando assumimos o papel de encabeçar uma família. Apesar de amarmos Ratatouille e tudo que ele representa, Pecados Íntimos é uma escolha que considero importante como lembrança de uma obra que merece ser conhecida por mais pessoas. Algo que lamento profundamente é que a carreira do Field tenha inexistido após este filme, já que desde então nenhum dos seus projetos foi para frente, sendo um deles um western com Christian Bale e o outro uma série com Daniel Craig. 


Assim como assisti Pecados Íntimos numa sessão de pré-estreia, também vi Piaf: Um Hino ao Amor numa dessas experiências. Conhecendo o trabalho de Marion Cotillard por sua breve presença em Peixe Grande e suas Histórias Maravilhosas e no pouco expressivo Um Bom Ano, me impressionei com o retrato de Edith Piaf feito pela atriz na biografia de Olivier Dahan, um desempenho que demanda transformação física de uma atriz, mas que inegavelmente solicitou esforços extras de Cotillard. E não foi uma escolha fácil, tendo em vista que chegamos a mencionar os nomes de Helen Mirren por A Rainha, Judi Dench por Notas sobre um Escândalo, a própria Kate Winslet de Pecados Íntimos e Keri Russell na joia indie pouco conhecida (mas que merece ser conhecida por quem nunca o assistiu) Garçonete. No entanto, Cotillard em Piaf: Um Hino ao Amor é uma "força da natureza" como costumam dizer. 


O segundo ano do site também nos deu uma mancha na biografia, gente... (acreditem, piores estão por vir rs) Sim, fiquei impressionado com o que o Gerard Butler fez como o Rei Leônidas em 300 de Zack Snyder a ponto de escolhê-lo como melhor ator do ano ao invés de outros nomes. Na verdade, até hoje, a melhor interpretação da frustrante carreira de Butler nos cinemas foi seu desempenho em 300, portanto, a escolha não foi tão absurda assim. É compreensível se olharmos dentro do contexto da sua época. Então, dá para perdoar não dá?

Não tenho registros dessa época do blog, portanto, infelizmente não consigo resgatar todos os nomes que chegaram a ser mencionados na ocasião em que escolhemos o desempenho de Butler em 300. Um deles me lembro, Jake Gyllenhaal em Zodíaco do David Fincher, mas os demais se perderam no tempo mesmo. 


2007 foi um dos vários anos de comeback na carreira da Michelle Pfeiffer desde que ela passou a trabalhar menos nos anos 2000 (o outro foi 2016, quando esteve em mãe! e Assassinato no Expresso do Oriente). A atriz retornou em 2007 com sua especialidade, interpretou duas vilãs, uma na fantasia de Stardust: O Mistério da Estrela de Matthew Vaughn e a outra foi a "mãe de miss" (e ex miss Baltimore Crabs) Velma von Tussle no musical Hairspray: Em Busca da Fama de Adam Shankman, que acabou sendo nossa escolha como atriz coadjuvante do ano.  

Trabalhos como os de Pfeiffer em musicais e comédias como Hairspray costumam ser inferiorizados  e subestimados em seu esforço pela "alta" cinefilia por um sempre redutivo preconceito com os gêneros em questão. A atriz está tão confortável numa personagem que esbanja veneno e vilania e  num filme tão pop (um dos melhores musicais da sua década, sim)... Seria até desonesto não citá-la em 2007, ainda que sinta que o cinema lhe deva uma carreira mais estável na sua maturidade, com mais protagonistas. *


Encerrando 2007, temos Jackie Earle Haley de Pecados Íntimos como o ator coadjuvante do ano. Haley teve uma tarefa complicadíssima no filme de Field: interpretar um pedófilo de forma que sua humanização não significasse a redenção do personagem por seus crimes, mas sim uma investigação sobre as origens do mal que ele acaba representando. O ator foi indicado ao Oscar por esse papel e surgiu na ocasião como um nome cuja carreira poderia ter mais fôlego (foi escalado para projetos ambiciosos, inclusive, como o Watchmen de Zack Snyder e o remake de A Hora do Pesadelo). É um grande ator, daqueles viscerais, e isso é sentido em cada filigrama da sua interpretação em Pecados Íntimos, mas não teve a carreira que merecia (pelo menos a que particularmente esperava). *

*Assim como no caso de Butler, não tenho registro dos nomes que foram mencionados junto com Michelle Pfeiffer e Jackie Earle Haley pelos motivos já mencionados. O mesmo deve acontecer em outras partes desse especial. 

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