
Quando jovens, Ronit e Esti desenvolveram uma relação de afeto que nunca puderam levar adiante em função da conservadora comunidade judaica no interior da Inglaterra da qual faziam parte. Ao ter a natureza dessa relação descoberta, Ronit foge para os EUA e se desvincula do seu passado, virando uma renomada fotógrafa, enquanto Esti se casa com Dovid, o jovem pupilo do pai de Ronit que fora criado para ser seu sucessor. Quando Ronit descobre que seu pai faleceu, ela retorna para o lugar da sua infância e adolecência e enfrenta novamente a hostilidade e o preconceito da sua família e de todos aqueles que fazem parte daquela comunidade. Esti, por sua vez, se vê diante de um dilema quando seus sentimentos pelo seu antigo amor vêm à tona: abandona todas as suas raízes como a amada ou sufoca os seus desejos mantendo um casamento de fachada?
A partir dessa história, em Desobediência, o diretor e roteirista chileno Sebastián Lelio, mas uma vez, faz um intimista e complexo comentário sobre uma sociedade preconceituosa que impõe uma série de obstáculos, rótulos e uma falsa tolerância a seus protagonistas (os filmes anteriores do realizador foram Uma Mulher Fantástica, vencedor recente do Oscar de melhor filme estrangeiro, e Glória). Aqui, ele apenas muda um pouco geograficamente. No lugar das paisagens chilenas, as frias avenidas novaiorquinas e londrinas ou os bucólicos subúrbios do interior da Inglaterra. A mudança cai como uma luva para a constante sensação de vigília e repressão velada da comunidade judaica que impede a história de amor entre Ronit e Esti, personagens da inglesa Rachel Weisz (produtora do filme também) e da americana Rachel McAdams, respectivamente.
A discrição da condução de Sebastián Lelio é um dos pontos altos de Desobediência. Como em seus outros filmes, o realizador consegue costurar personagens repletos de calor humano e mergulhados em situações marcadas por altas cargas de sentimentos sem recorrer às cores fortes de um dramalhão. Em Desobediência, essa qualidade tem eco numa história que precisa encontrar a tensão e o obstáculo para as suas protagonistas em normas e olhares de reprovação incorporados na dinâmica social daquele contexto por aqueles que fazem parte dele. Há momentos pontuais em que o tom das vozes é elevado, mas eles são localizados, não são constâncias nessa história. Essa característica da trama encontra em Lelio o diretor ideal para conduzi-la, sobretudo porque depende muito de um olhar intimista para a experiência das suas protagonistas.
O trabalho do diretor também fica fácil quando ele tem à sua disposição um elenco formidável encabeçado por Rachel Weisz e Rachel McAdams. Enquanto Weisz tem que expressar o receio e ansiedade de Ronit ao ter que reviver tudo aquilo que havia deixado para trás e que acreditava não ter a necessidade de encarar novamente, McAdams tem um desempenho cheio de nuances interessantes no conflito entre desejo e tradição que deixa sua Esti reticente na hora de tomar qualquer decisão relativa a seu sentimento por Ronit.
Além das duas atrizes principais, cabe destacar a performance de Alessandro Nivola, que na pele do marido de Esti tem um impactante discurso no terceiro ato sintetizando as ideias centrais do filme sobre a importância de pregar o amor e a tolerância no lugar do ódio, do preconceito e da castração de vontades. É um momento na história que culmina num belíssimo plano composto pelos três personagens centrais da trama. Simbolicamente, o personagem de Nivola se torna esse elemento novo que possui a potência de trazer mudanças para uma comunidade comandada por homens de idade mais avançada e apegados a tradições impermeáveis às demandas da contemporaneidade. Aliás, não só ele acaba com esta incumbência como Esti também a partir de algo que descobre sobre seu casamento no terceiro ato de Desobediência. No final das contas, o recente trabalho de Lelio é um longa que tem como virtude compreender que a renovação é necessária até mesmo para que a tradição consiga sobreviver no compasso das demandas da sociedade.
É um alento receber nos cinemas uma história que tem tanto a dizer sobre a importância de se respeitar o outro, entendendo por isso o verdadeiro significado de amor. Desobediência é um filme carregado por essa virtude e que vem na forma de uma narrativa cinematográfica cuidada com esmero por um diretor cujo principal mérito tem sido destacar identidades, tecendo considerações pertinentes sobre a sociedade e suas formas de converter noções como respeito em atos de extrema violência (não necessariamente física) legitimados por instituições como igreja, família etc. Desobediência trata disso e como, no final das contas, quando há tolerância, o amor, sem a pieguice costumeira que se atribui a esse sentimento, acaba prevalecendo.
Disobedience, 2018. Dir.: Sebastián Lelio. Roteiro: Sebastián Lelio e Rebecca Lenkiewicz. Elenco: Rachel Weisz, Rachel McAdams, Alessandro Nivola, Nicholas Woodeson, Allan Corduner, David Fleeshman, Steve Furst, Anton Lesser, Trevor Allan Davies. Sony, 114 min.
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