Quatorze anos depois do primeiro filme, 'Os Incríveis 2' subestima sua concorrência


Após a sessão de Os Incríveis 2, parte do público que assistiu ao primeiro longa nos cinemas em 2004 certamente sairá satisfeito com o entretenimento proporcionado pela continuação do filme de super-heróis da Pixar, mas com a ligeira sensação de que algo ficou para trás de lá para cá. Quando fora lançado, Os Incríveis tinha pouca concorrência  no seu nicho. Tínhamos acumulado no nosso repertório as experiências com Superman e Batman na Warner nas décadas de 1970, 1980 e 1990 e o cinema de super-heróis ganhava fôlego nos primeiros anos de 2000 com franquias como X-Men de Bryan Singer e Homem-Aranha de Sam Raimi, nada além disso. Atualmente, juntas, a Marvel Studios e a Warner/DC chegam a lançar entre dois e três exemplares cada por ano.

Em 2004, o filme da Pixar trazia um olhar inventivo para dinâmicas familiares, políticas de segurança do governo e buscava um diálogo com o cinema de espionagem tudo no contexto do universo dos super-heróis. Quatorze anos depois, e já com a trilogia Cavaleiro das Trevas de Christopher Nolan ou o projeto Vingadores da Marvel Studios como passado, podemos dizer que esses filmes devem muito a Os Incríveis também por mostrar que o entretenimento proporcionado pelo seu nicho de produção pode vir numa roupagem esperta, com um roteiro inteligente e que exponha seus personagens a situações dramáticas suficientemente engajáveis na relação da obra com o espectador. O que vemos em Os Incríveis 2, no entanto, é um filme estacionado em 2004 e que, por essa mesma razão, subestima sua concorrência e a relação do seu público com esse conjunto de títulos. 

De um lado, Brad Bird, o mesmo responsável pelo primeiro longa, volta a explorar a tensão entre governo e super-seres a respeito da permissão das atuações dos segundos em situações que ponham em risco a humanidade, reaproveitando uma singularidade do anterior, que, por sua vez, não é mais novidade haja vista longas como Capitão América: Guerra Civil, Capitão América: Soldado Invernal e até o polêmico (e atabalhoado) Batman vs. Superman: A Origem da Justiça. Do outro lado, Os Incríveis 2 tenta inserir suas personagens no contexto da discussão sobre os novos papéis familiares colocando Helen (Mulher-Elástica) para atuar na rua combatendo o crime e Bob (Sr. Incrível) cuidando dos filhos e afazeres domésticos.

Sério que isso é novidade? Sério que Os Incríveis 2 acredita estar fazendo um comentário capaz de chacoalhar as cristaleiras da sociedade com essa discussão? No filme, tudo é tratado como uma grande subversão como acontecia com o primeiro. Isso ilustra o anacronismo de uma continuação que busca esse tipo de discussão quando estamos em tempos de repensar o lugar destinado às mulheres e aos negros no cinema com longas como Mulher Maravilha e Pantera Negra e o preconceito já era um tema que recebeu tratamento bastante amadurecido na franquia X-Men. No fim das contas, a continuação de Os Incríveis parece acreditar que o filme está à frente do seu próprio nicho, como em 2004, quando na verdade desconhece e subestima o estágio no qual as coisas se encontram atualmente. 


Algo não dá para negar, a continuação da Pixar segue como um entretenimento acima da média, com protagonistas carismáticos e inseridos em cenas de ação de tirar o fôlego, mas diferente do antecessor, quando almeja ser mais do que isso, Os Incríveis 2 esbarra num público que já está mais do que letrado em filmes de super-heróis e que, atualmente, possui demandas maiores do que discutir os novos arranjos familiares entre homens e mulheres no cuidado com seus filhos (atualmente, por exemplo, discute-se a ausência de personagens LGBT+ nesses títulos). Assim, se tivesse assumido única e exclusivamente a roupagem de um filme de ação, Os Incríveis 2 teria muito mais a ganhar pois tem material de sobra para tanto. Não que a discussão sobre a troca de papéis no lar dos Parr não proporcione momentos interessantes naquela dinâmica familiar ou tenha, dentro dos próprios termos assumidos pela história, levado seus personagens a amadurecerem em algum nível e não nos emocione em momentos pontuais, mas traz a impressão de que o filme não acompanha o seu tempo ou propõe esse tópico com um ligeiro atraso. 

Nada disso que fora levantado nesse texto atrapalhará a experiência do público com o filme como produto feito para entreter. Mais do que o novo vilão e o desafio que ele impõe à família de super-heróis, o que está em voga novamente em Os Incríveis 2 é a relação dos Parr e como eles fortalecem seus vínculos no momento em que partilham situações que os testam, como enfrentar grandes ameaças à humanidade, por exemplo. O filme também nos proporciona mais momentos com o bebê Jack-Jack (ou Zezé em português), que impõe um desafio ao Sr. Incrível: encontrar uma forma de controlar a manifestação dos seus múltiplos poderes. Enfim, são mais de duas horas de muita diversão para o público, mas o caráter inventivo e transgressor do seu antecessor ficou para trás pelo "caminhar" dessa máquina que tem sido o cinema de super-heróis na Hollywood de 2004 para cá. Os Incríveis 2 acaba parecido com a média de títulos apenas satisfatórios dos seu nicho de realização. 


The Incredibles 2, 2018. Dir.: Brad Bird. Roteiro: Brad Bird. Vozes de: Holly Hunter, Craig T. Nelson, Sarah Vowell, Huck Milner, Catherine Keener, Bob Odenkirk, Samuel L. Jackson, Sophia Bush, Isabella Rossellini, Brad Bird. Disney, 118 min. 

Assista ao trailer:


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Chovendo Sapos: Quatorze anos depois do primeiro filme, 'Os Incríveis 2' subestima sua concorrência
Quatorze anos depois do primeiro filme, 'Os Incríveis 2' subestima sua concorrência
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