A falência de um modelo de sociedade é abordada em 'Mudbound: Lágrimas sobre o Mississippi'


Mudbound: Lágrimas sobre o Mississippi traz um recorte interessante de um conflito histórico amplamente explorado em outras narrativas, sobretudo cinematográficas, a Segunda Guerra Mundial. O filme faz isso dimensionando a transformação no comportamento dos americanos que foram para o front e foram afetados direta ou indiretamente pelo conflito, além de se posicionar sobre uma mácula da sociedade americana, o preconceito racial. Conduzido por Dee Rees, de Pariah e Bessie, o longa segue a tradição de dramas de época que procuram fazer um inventário da história do país para refletir sobre o espólio das suas relações sociais. 

O caminho da diretora é relativamente simples e segue toda uma tradição do cinema americano. Dee Rees, entretando, utiliza "velhos" e "conhecidos" recursos em prol de um discurso incisivo - e nem por isso ausente de afeto para seus personagens e suas questões - sobre uma ranhura social que a preocupa, o racismo.  Em Mudbound, a trajetória de duas famílias colidem. De um lado os McAllan, um núcleo de brancos que acabam de se mudar para uma fazenda no delta do rio Mississippi. No outro polo da trama está os Jackson, uma família negra trabalhando no plantio e colheita da região. Quando dois jovens dos dois núcleos familiares retornam da guerra e começam a cultivar uma amizade, algumas questões passam a demonstrar relevância e anunciar a tragédia e transformações para os dois lados. 


A princípio, a atenção dada pelo filme a dois núcleos familiares com múltiplas tramas e narrações para cada um dos seus personagens parece indicar a dispersão em Mudbound. No entanto, conforme a história de todos personagens se encontram e vislumbramos espaço para desenvolver suas conexões, o filme desperta a atenção para a sensibilidade e incisividade com que Dee Rees, também responsável pelo roteiro do longa, conduz sua narrativa. Em síntese, Mudbound utiliza a guerra para fazer colidir dois modelos de sociedade antagônico. De um lado, os que permanecem nos EUA e parecem viver numa instância geográfica que parou no tempo, norteada por preconceitos que sufocam a liberdade. Do outro lado, temos aquele representado pelos personagens que colhem a herança da guerra e refletem sobre a impossibilidade de êxito de uma estrutura social sustentada até aqui. Jamie e Ronsel, Garrett Hedlund e o ótimo Jason Mitchell respectivamente, não conseguem conceber o preconceito racial na comunidade rural de suas famílias pois sabem que ali há ecos de uma intolerância que vivenciaram no front. Os dois, inclusive, adquirem uma cumplicidade graças à partilha de uma experiência. Além disso, a jovem Laura de Carey Mulligan, cunhada de Jamie, percebe claramente o resultado de um matrimônio arranjado e da abdicação dos seus desejos na sua própria realização pessoal. O delta Mississippi é pequeno demais para os três.

Mudbound é repleta de personagens que foram severamente afetados pela guerra, mas que vivem bem longe das trincheiras, especificamente na região do Mississippi, um local que pouco a pouco parece atrasado ao preservar uma intolerância que, na sua época, já demonstra sinais de saturação. Há na trama uma insustentabilidade desse modelo de sociedade e os sinais iniciais de uma consciência da sua inconsistência são percebidas na maneira como Jamie, Ronsel e Laura refletem sobre suas próprias jornadas pessoais e escolhas. O filme de Dee Rees tem a sensibilidade de captar a origem de um novo momento que se comunica com o agora e o faz com um comprometimento artístico ímpar, da elegância como conduz a sucessão de acontecimento e explora a psicologia das suas personagens às imagens registradas graças ao exímio trabalho da diretora de fotografia Rachel Morrison. Dá gosto de ver.  


Mudbound, 2017. Dir.: Dee Rees. Roteiro: Dee Rees. Elenco: Jason Mitchell, Garrett Hedlund, Carey Mulligan, Mary J. Blige, Jason Clarke, Jonathan Banks, Rob Morgan, Kerry Cahill, Kelvin Harrison Jr., Dylan Arnold, Lucy Faust. Diamond Filmes, 134 min. 

Assista ao trailer: 


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A falência de um modelo de sociedade é abordada em 'Mudbound: Lágrimas sobre o Mississippi'
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