A Marvel Studios alcançou um status tão forte entre seus fãs e parte da crítica que passou a ser difícil se posicionar com reservas a respeito de alguns dos seus filmes ou do seu projeto cinematográfico sem que o porta-voz dessa percepção sofra algum tipo de censura. Mérito total de um estúdio que praticamente consolidou uma fórmula eficiente de comunicação com o seu público instituindo uma gramática para filmes de super-heróis que até a concorrência mira vez ou outra. No entanto, ainda que seus fãs celebrem títulos como Capitão América: Guerra Civil, Homem-Aranha: De Volta ao Lar e Thor: Ragnarok, muitas vezes de maneira excessivamente entusiasmada como verdadeiras revoluções cinematográficas, nenhum deles chega a fazer o que Pantera Negra faz pelo catálogo do estúdio ao ir na contramão do esperado humor adolescente que freia qualquer impacto dramático na narrativa como se ceder à urgência da trama afugentasse sua plateia cativa. Próximo de Pantera Negra, apenas Capitão América: Soldado Invernal.
O filme de Ryan Coogler trata com maturidade o seu universo fantástico, sem recorrer ao cinismo e a autorreferência que muitas vezes fazem com que os filmes do estúdio se transformem em obras efêmeras. Ao contar a história do príncipe T'Challa assumindo o trono de Wakanda e tudo o que vem junto com o título, incluindo a identidade do Pantera Negra e a responsabilidade de administrar a riqueza que o fictício país africano esconde a "sete chaves", Coogler desenvolve uma série de temas relacionados às relações políticas internacionais de exploração dos povos legadas pela história e, sobretudo, o preconceito racial que manifesta problemas localizados na sociedade, entre eles, o ódio e a violência que se ramifica ao longo do tempo. Tudo isso é desenvolvido com maturidade por um roteiro e direção que consegue provar que não é necessário ser infantil ou sisudo demais para oferecer uma obra de fantasia comercialmente viável e minimamente marcante do ponto para o espectador, algo que, honestamente, poucas vezes vimos nos longas de super-heróis recentemente, sejam eles com o selo da Marvel ou da DC Comics.
Com sua trama de conflitos familiares e sucessões de trono atreladas a metáforas a respeito de problemas sociais e da geopolítica, Pantera Negra ainda consegue desenvolver uma mitologia riquíssima em torno da fictícia Wakanda e das complexas relações políticas e afetivas tensionadas pelos seus personagens. Os habitantes dessa mitologia possuem, por vezes, percepções divergentes sobre a maneira como a riqueza de Wakanda deve ser administrada (protegida localmente para proteger os povos que a habitam ou compartilhá-la com o mundo?), bem como códigos de conduta particulares (dever a Wakanda, independente de quem assume o trono e em que circunstâncias, ou às relações de afeto e respeito que são criadas?). Tudo isso faz com que o filme ofereça para o espectador um mosaico de personagens interessantes que, a todo instante, provoca o público a considerar pontos de vista e repensar julgamentos sobre as ações provocadas, mesmo quando o foco das atenções é o vilão muito bem interpretado por Michael B. Jordan.
Desde Capitão América: Soldado Invernal de 2014, a Marvel não oferecia uma obra capaz de deixar de lado a segurança de uma fórmula de sucesso para abraçar novos horizontes, além da potencialidade a ser explorada pelo universo peculiar de um dos seus personagens. Seria demais esperar que os próximos filmes do estúdio tivessem 1/10 da relevância de Pantera Negra porque possivelmente o rolo compressor da indústria deve legar um exemplar como esse num hiato relativamente longo de tempo. No entanto, é interessante que um evento assim seja realmente localizado na filmografia para conseguirmos distinguir aquilo que de fato é singular no catálogo da Marvel Studios daquilo que somente aparenta ser revolucionário mas que no fundo segue um "manjado" protocolo dos filmes de super-heróis. Pantera Negra é outra história.
Black Panther, 2018. Dir.: Ryan Coogler. Roteiro: Ryan Coogler e Joe Robert Cole. Elenco: Chadwick Boseman, Michael B. Jordan, Lupita Nyong'o, Danai Gurira, Letitia Wright, Angela Bassett, Forest Whitaker, Andy Serkis, Sterling K. Brown, Martin Freeman, Daniel Kaluuya, Winston Duke. Disney, 134 min.
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