Luta pelos direitos das mulheres nos anos 70 é tema de 'A Guerra dos Sexos'


A partida de tênis entre Billie Jean King e Bobby Riggs em 1973 teve motivadores bem diferentes para os envolvidos no confronto das quadras. Enquanto o veterano aposentado Riggs enxergava no embate uma forma de lucrar rios de dinheiro com seu show midiático de excentricidades, para King, a partida se transformou numa questão de honra, afirmando a causa feminista em prol da equiparação salarial, do restabelecimento da moral do grupo tenistas que representava, mas também uma afirmação da sua própria identidade. Tudo o que Billie Jean King queria era respeito e isso não é pedir muito. Após o jogo, definidor no tênis mundial, na causa feminista, mas sobretudo na trajetória da própria Billie Jean King, a tenista se transformaria no símbolo da luta pelos direitos das mulheres no seu país, fazendo com que suas vitórias caminhassem em paralelo com a autoaceitação da sua sexualidade. 

É a história que apresentamos no parágrafo anterior que Jonathan Dayton e Valerie Faris querem contar fazendo de A Guerra dos Sexos o terceiro longa-metragem das suas carreiras - os anteriores foram Ruby Sparks: A Namorada Perfeita e, o mais notório deles, Pequena Miss Sunshine. Em A Guerra dos Sexos há um proposital desequilíbrio na balança que constrói a trajetória dos dois personagens que se enfrentaram nas quadras em 1973. O pano de fundo do filme é sim a disputa entre King e Riggs, mas fica claro desde o primeiro instante que o interesse dos diretores e do roteiro de Simon Beaufoy (Quem quer ser um milionário?) é pela trajetória da tenista interpretada com sensibilidade por uma Emma Stone que suplanta seu desempenho oscarizado em La La Land. A Guerra dos Sexos não é um filme sobre King vs. Riggs, mas um filme sobre a luta pela visibilidade e pelo direito à vida e seria impossível fazer isso por uma perspectiva do tenista Bob Riggs, que, sempre teve caminhos facilitados por razões óbvias. Assim, a prioridade de A Guerra dos Sexos por Billie Jean King é mais do que justa e coerente com os propósitos do filme. 

O enfoque em Billie Jean também se justifica pelo fato de que a principal batalha da tenista nunca foi contra Bob Riggs, personagem de Steve Carell, que representava apenas a ponta do iceberg e era apenas uma caricatura de "porco chauvinista" como ele mesmo se denominava, sempre jogando para a plateia a fim de lucrar muito com suas partidas midiatizadas para pagar suas dívidas de jogo. Nesse sentido, até mesmo o personagem de Bill Pullman, o presidente da associação de tenistas Jack Krammer, representa uma ameaça mais grave para a protagonista com sua notória misoginia e seus efeitos práticos na vida dela e das demais tenistas. 

A principal disputa de King era contra todo um sistema que tinha o espalhafatoso Riggs como mais uma peça de um intrincado jogo social que legava às mulheres lugares subalternos, mesmo quando as mesmas assumiam um equivalente (ou superior) protagonismo em suas áreas de atuação. King ainda enfrentava secretamente outra luta social ainda mais difícil, o exercício da sua sexualidade e a concretização de uma vida amorosa livre quando se percebia homossexual ainda casada com um dos grandes apoiadores da sua carreira, Larry, interpretado por Austin Stowell. Nesse sentido, o filme constrói, por exemplo, a complexa dinâmica de Billie Jean com o marido e a cabeleireira Marilyn, papel de Andrea Riseborough. 


O interesse de A Guerra dos Sexos é pelo universo do tênis na década de 1970, mas, como podem notar, esse contexto pode ser substituído perfeitamente por qualquer outra época e área de atuação. Apesar de estar no topo da sua carreira, Billie Jean King não conseguia receber o mesmo que seus colegas do sexo masculino e também não lhe era permitido amar quem ela desejava sem que fosse de alguma maneira repreendida por seus sentimentos. A solução e alternativa encontrada por ela foi ser desvinculada da associação de tênis americana e criar um corpo profissional e torneios próprios para mulheres, mas também viver uma vida amorosa na clandestinidade e todos os efeitos psicológicos devastadores que uma experiência silenciada nesse nível pode trazer. 

Quando a tenista Margaret Court perde feio para o aposentado Riggs, a competência e o talento de King e suas colegas são postos em cheque, mas também há na protagonista uma tensão pela possibilidade de que sua vida pessoal se torne algo público enquanto a própria personagem tentava compreender o que estava se passando na sua relação com Larry e Marilyn. Para parte da sociedade americana, a derrota de Margaret Court era uma comprovação da superioridade dos esportistas do sexo masculino. Para parte da sociedade americana, ter um símbolo da causa feminista como Billie Jean associada à homossexualidade era prova cabal da promiscuidade de um grupo. Assim, King se vê obrigada a aceitar o desafio e mostrar para todos o que uma mulher é capaz de fazer nas quadras, lutando pela sua dignidade humana em duas frentes, profissional, mas também existencial. Esse é o brilho de A Guerra dos Sexos,

Apesar do roteiro de Simon Beaufoy escorregar ocasionalmente no didatismo de seus diálogos, fazendo questão de traduzir em palavras aquilo que os personagens sentem e pensam quando tudo poderia ser feito de maneira sutil, o filme é poderoso. O tipo de longa que não é de maneira alguma perfeita, mas que suplanta a própria análise estritamente formal da sua execução por apresentar valores enquanto obra cinematográfica em outros níveis. Jonathan Dayton e Valerie Faris ganham o espectador pela maneira fluida com que conduzem seu filme arrancando desempenhos comprometidos do seu elenco, mas também na potência do que têm a dizer sobre sua protagonista e sua trajetória.

Em tempos nos quais as lutas por direitos de minorias são tratados por parcela da população do mundo como um alarde desproporcional de gente que tem muito pouco o que fazer da vida (o tal do "mimimi"), é curioso (e preocupante) perceber como o mundo segue uma eterna partida King X Riggs, com a urgência cada vez mais forte da luta por um espaço conquistado e que é sempre ameaçado, negado e tratado como supérfluo, sobretudo porque parcela da população brada e tem muito a palpitar sobre causas que desconhece por completo. A Guerra dos Sexos é pedagógico nesse sentido. Como a própria King afirma em dado momento do filme, no caso da luta feminista, o que o feminismo quer e representa não é a supressão do masculino pelo feminino, mas o respeito e reconhecimento daquilo que é negado às mulheres, uma causa mais do que digna e que deve ser tratada com muito cuidado por pretensos detratores e apoiadores da causa. 

A Guerra dos Sexos não é um filme que merece ser lido estritamente pela questão do gênero. A luta de King era uma batalha que nem a própria personagem suspeitava estar travando e que não se restringia àquele momento na quadra contra Riggs, mas a toda uma vida que sufocava seu direito de viver do tênis sendo mulher e de se apaixonar e ter uma relação aberta com alguém do mesmo sexo. Como denuncia uma cena na qual a protagonista extravasa toda sua emoção num choro explosivo no vestiário, A Guerra dos Sexos é uma catarse, mas também uma lembrança de que o que pessoas como Billie Jean King querem ou pedem da sociedade não é excessivo, mas o essencial para ter uma vida comum e de direito a qualquer cidadão 


Battle of the Sexes, 2017. Dir.: Jonathan Dayton e Valerie Faris. Roteiro: Simon Beaufoy. Elenco: Emma Stone, Steve Carell, Andrea Riseborough, Austin Stowell, Sarah Silvermann, Alan Cumming, Elisabeth Shue, Bill Pullman, Natalie Morales, Jessica McNamee, Eric Christian Olsen. Fox, 121 min. 

Assista ao trailer: 



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Chovendo Sapos: Luta pelos direitos das mulheres nos anos 70 é tema de 'A Guerra dos Sexos'
Luta pelos direitos das mulheres nos anos 70 é tema de 'A Guerra dos Sexos'
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