'Feito na América' traz um Tom Cruise disposto a fazer diferente (ou nem tanto)


Barry Seal, personagem que Tom Cruise interpreta em Feito na América, não é uma variação de Ethan Hunt, agente que o ator imortalizou na série de filmes Missão: Impossível. O piloto americano que faz um jogo duplo como contrabandista de armas e drogas para os EUA e o cartel de Medellín  do novo filme de Doug Liman não é o cara que surpreendentemente sairá ileso das situações mais inusitadas e perigosas com uma carta escondida na manga. Na maioria das vezes, Barry tem medo das situações que enfrenta, tentando se desvencilhar das mesmas com um taco de beisebol ou temendo perder a própria vida e pôr a de terceiros em perigo caso seja vítima de uma queima de arquivo. Seal é o cara que conta com a sorte de estar inserido num sistema extremamente corrupto que não se beneficiará em nada com qualquer tipo de punição a suas ações, sua salvação depende dos interesses de terceiros e de todo um sistema burocrático. Ao mesmo tempo, ele sempre se safa, é casado com uma bela e jovem esposa e tem tempo de fazer gracinha para a câmera e mostrar para o público quão cool ele e o filme em que está inserido é.

Assim é Feito na América, um longa que, suavemente, tira Tom Cruise da sua zona de conforto, afinal, pela primeira vez em anos o ator interpreta um homem relativamente comum com falhas de caráter envolvido num contexto completamente inusitado com ares de filme pop nas mãos de Doug Liman.  No entanto, esse longa estrelado por Tom Cruise procura se cercar das garantias de que não afugentará as plateias seguras com a presença da persona do seu astro preferido na tela através de uma reiteração daquilo que ele tem feito na franquia Missão: Impossível, Jack Reacher e outros enlatados. O filme de Liman não será nada que trace uma rota completamente nova na filmografia do ator, mas ainda assim, nos apresenta uma nuance interessante e levemente refrescante para um astro que parecia satisfeito em ficar exatamente onde estava fazendo os filmes que sempre fez. 

Em Feito na América, Cruise está disposto a oferecer um produto que deixa satisfeito dois tipos de espectador: o público que o acompanha incondicionalmente e reconhece os códigos recorrentes das histórias e das interpretações do astro de Top Gun; bem como aquele que tem demandado do próprio assumir mais riscos e uma diversidade maior de papéis, como fizera quando aceitou participar de longas como Magnólia ou Entrevista com o Vampiro nas décadas de 90 ou mesmo Trovão Tropical e Rock of Ages recentemente, saindo da zona de conforto dos filmes de ação, espionagem ou ficção científica, sua especialidade de uns anos pra cá, sobretudo quando seu envolvimento com a Cientologia ficou ainda mais sério e ele assumiu um papel central de porta-voz da religião. 


Como adiantei, a trama de Feito na América é baseada em eventos reais e envolve esse piloto comercial americano interpretado por Tom Cruise que, após ser recrutado pela CIA nos anos 80, acaba atuando em duas frentes no transporte de drogas e armas entre EUA e América Latina. Na pele desse homem tragado pela própria ambição e que, posteriormente, não consegue desembaraçar a complicação que se torna sua própria vida, Cruise está num dos melhores desempenhos da sua carreira recente, oferecendo nuances interessantes a um outsider instrumento de uma trama tecida por instituições e agentes perigosos e safos no mundo do crime. Aqui, no entanto, nada é severo ou assume tons de tragédia ou de crítica social explícita, tudo é lidado com leveza e humor o suficiente para tornar a trama palatável e sedutora a plateias dos mais diversificados nichos. Assim, o tom adotado por Liman é comercialmente estratégico, mas também orgânico e coerente com a inacreditável biografia do seu protagonista, adotando a incisividade que o tratamento do contexto histórico precisa, mas também utilizando a âncora do entretenimento da qual o filme, como autêntico exemplar da recente carreira de Cruise, não pode se desvencilhar. 

Utilizando na narrativa recursos como a câmera na mão e o videotape caseiro, que atuam organicamente no desenvolvimento da própria história e que se revelam importantes ao final do filme, Feito na América não representará a revolução necessária que a carreira do seu astro precisa no momento. O filme não representa necessariamente novos ares, mas  ainda assim é uma iniciativa interessante e que deveria ser tomada com mais frequência na filmografia de Cruise. Mesmo que siga numa relativa zona de conforto - trabalhando com um personagem amigável aos olhos da platéia e com um diretor que parece disposto a se adaptar aos ditames da sua atual carreira, assim como Christopher McQuarrie (de Missão: Impossível - Nação Secreta e Jack Reacher), o Tom Cruise de Feito na América me parece mais marcante do que aquele encarnado em Oblivion, No Limite do Amanhã... O Cruise de Feito na América é o mais próximo que chegamos de um ator interessado em compor algum vestígio de personagem que se afaste minimamente da sua persona. É bom, mas a gente quer mais.  

American Made, 2017. Dir.: Doug Liman. Roteiro: Gary Spinelli. Elenco: Tom Cruise, Domhnall Gleeson, Sarah Wright, Jesse Plemons, Caleb Landry Jones, Lola Kirke, Jayma Mays, Alejandro Edda, Benito Martinez, E. Roger Mitchell, Mauricio Mejia, Robert Farrior. Universal, 115 min. 

Assista ao trailer do filme: 


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Chovendo Sapos: 'Feito na América' traz um Tom Cruise disposto a fazer diferente (ou nem tanto)
'Feito na América' traz um Tom Cruise disposto a fazer diferente (ou nem tanto)
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