Inspirador, 'Mulher-Maravilha' nos faz retornar aos primórdios dos filmes de heróis


Mulher-Maravilha é um achado nessa era da proliferação de filmes de super-heróis que vivemos. Diferente dos seus contemporâneos que estão sustentados nas articuladas conexões de um universo compartilhado entre personagens, Mulher-Maravilha, tal qual Capitão América: O Primeiro Vingador (e provavelmente com mais êxito que ele), se contenta em narrar a jornada de descoberta da sua heroína. O filme de Patty Jenkins guarda semelhanças com títulos como Superman: O Filme, de Richard Donner, Homem-Aranha, de Sam Raimi, e Batman Begins, de Christopher Nolan, curiosamente longas de outras lógicas operantes nesse nicho de produção. Nessa jornada em que a princesa amazona de Themyscira se dá conta da dimensão dos seus poderes e de que forma eles podem ajudar a humanidade, Jenkins encontra um caminho simples e seguro para tornar o seu filme uma experiência satisfatória para o público, apresentar a sua personagem de maneira consistente e construir um mito, como manda a tradição DC Comics. 

Em Mulher-Maravilha, Diana vive em Themyscira, Ilha Paraíso das amazonas, ao lado de sua mãe a rainha Hipólita. Treinada pela general Antiope para ser uma guerreira, Diana toma ciência da Primeira Guerra Mundial quando o espião Steve Trevor cai por acidente na ilha das amazonas. Ela decide partir junto com ele para cumprir o seu destino e pôr fim àquele que seria o causador de todo o conflito, o deus da guerra Ares. 

É curioso que somente em 2017 tenhamos um longa-metragem da Mulher-Maravilha. Tão importante quanto personagens como Superman ou Batman, a Mulher-Maravilha teve sua oportunidade de chegar às telonas brecada por estigmas da própria indústria de que filmes de super-heroínas não dão certo. As últimas investidas do gênero não colaboraram com esse cenário, como Elektra e Mulher-Gato, mas não são desastres porque são fitas protagonizadas por personagens femininas e sim porque são títulos ruins, mal executados. Em tempos nos quais se faz filme de tudo quanto é tipo de personagem de quadrinhos, do Homem-Formiga ao próprio Aquaman da DC, já estava na hora da mais icônica personagem desse universo ganhar vez. Para a felicidade dos fãs do gênero, ela tomou vida da melhor forma possível graças aos esforços da diretora Patty Jenkins. 

Todos sabemos que um filme das dimensões de Mulher-Maravilha não é centrado exclusivamente na figura do seu diretor, que concorre com uma dezena de vozes na concepção de uma obra. Porém, o comando de Jenkins e sua participação em todo o processo não pode ser negado e a diretora administrou tudo com precisão cirúrgica e uma segurança muito grande na história que tinha em mãos, mesmo em meio a toda turbulência que tem recaído no departamento de filmes da DC Comics na Warner desde as críticas negativas a Batman vs. Superman: A Origem da Justiça. Mulher-Maravilha tem uma excelente condução da sua diretora, quando exige dela introspecção em momentos mais intimistas da sua história, mas também muita técnica na hora de rodar suas cenas de ação, todas executadas primorosamente, utilizando à seu serviço até mesmo recursos estigmatizados no universo DC Comics desde que Zack Snyder dirigiu O Homem de Aço como o slow motion, aqui eles surgem para valorizar o impacto de certos eventos (como o instante em que Diana presencia pela primeira vez a morte de uma amazona) ou destacar a movimentação dos seus personagens. 

Um dos êxitos do longa é a habilidade com que Jenkins e o roteirista Allan Heinberg lidam com todas as questões centrais das HQs da personagem, todas elas muito complicadas de se adaptar, por sinal. Contrastando as cores de Themyscira com o acinzentado da Londres da Primeira Guerra Mundial, Mulher-Maravilha é todo centrado nesse choque de Diana com o mundo que está fora da bolha de sua ilha, algo que oferece uma metáfora riquíssima, já que lá ela está protegida com sua mãe e as amazonas e fora dela se dá conta da destrutiva natureza humana. É interessante como o longa explora esses contrastes a favor da construção de sua protagonista chegando ao tratamento da questão de gênero, que jamais surge como um discurso panfletário na boca da Mulher-Maravilha, mas algo perfeitamente orgânico a quem nunca cresceu com a incompreensível distinção entre homens e mulheres. Até mesmo seu relacionamento com Steve Trevor e a valorização dos atributos físicos de Diana Prince, questões que poderiam  depor contra a personagem, são tratados com maturidade por uma Jenkins que naturaliza a ideia de que ser heroína não a impede que Diana deseje estabelecer relações afetivas com um homem por quem se sinta atraída (tal qual seus colegas por tantas gerações de filmes do nicho) tampouco abra mão da sua vaidade. 

O filme ainda consegue administrar muito bem a mitologia grega, um elemento que nas mãos de gente menos habilidosa poderia ter um tratamento desastroso. O principal vilão de Diana Prince, Ares, surge no filme com um conceito bem interessante e em um contexto histórico propício para tanto. Assim, talvez Jenkins e Heinberg não estivessem em um um terreno tão seguro como pensávamos, sua história de origem tem contornos delicados a serem tratados e todos foram costurados com muita fluidez pelos envolvidos. Diferente de outros títulos desse universo compartilhado DC, Mulher-Maravilha sabe como olhar para a proposta de super-heróis da empresa (eventos grandiosos, seres mitológicos, questões que são maiores do que a experiência humana mas que nos fazem olhar para a mesma). E o olhar que Jenkins e seu roteirista têm para ela extrai caminhos que jogam a favor e não contra sua história. 

Visualmente irretocável e narrativamente fluido e coerente, Mulher-Maravilha ainda conta com um elenco comprometido em compor tipos carismáticos, como o piloto Steve Trevor de Chris Pine, ou a secretária Etta da simpática Lucy Davis, e inspiradores, como a amazona Antiope de Robin Wright, mas claro que o peso maior está nas costas de Gal Gadot. A atriz consegue imprimir sua própria versão de Diana Prince com força, graciosidade e elegância. Gadot tem um porte de realeza que favorece a construção mitológica em torno de sua personagem e imprime nas cenas de ação da mesma uma assinatura toda peculiar. 

É importante que se diga que em 2017 estamos enaltecendo o fato de uma mulher finalmente conseguir chegar a direção de um filme dessa porte e termos um longa-metragem de super-heroína (a maior de todas elas, diga-se de passagem) sendo realizado com muito êxito. Contudo, tem outro aspecto importante que atravessa o filme, há uma mensagem sobre a presença do mal em nosso mundo que não é personificado e ataca de maneira sorrateira, precisando ser combatido com sentimentos como compaixão e amor. Ela pode soar piegas aos olhares mais cínicos, porém nos remetem à gênese desse universo mitológico fomentado pela indústria dos quadrinhos de super-heróis (sobretudo os da DC Comics com seus meta-humanos), algo que nos inspira desde a infância. Acreditar na humanidade e se espelhar em modelos como Diana Prince ou Clark Kent nos conecta com sentimentos que parecem ter sido banalizados por essa máquina de reprodução que se tornou os filmes de super-heróis hoje em dia. Mulher-Maravilha me fez voltar a um tempo da inocência no qual as histórias desse tipo de personagem faziam os olhos da gente marejar e nosso coração se encher de esperança. É piegas, sei, mas é simples, sincero e extremamente necessário.  

Wonder Woman, 2017. Dir.: Patty Jenkins. Roteiro: Allan Heinberg. Elenco: Gal Gadot, Chris Pine, Robin Wright, Connie Nielsen, Danny Huston, Elena Anaya, David Thewlis, Saïd Taghmaoui, Ewen Bremner, Lucy Davis, Lilly Aspell, Emily Carey. Warner, 141 min. 

Assista ao trailer do filme:

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Chovendo Sapos: Inspirador, 'Mulher-Maravilha' nos faz retornar aos primórdios dos filmes de heróis
Inspirador, 'Mulher-Maravilha' nos faz retornar aos primórdios dos filmes de heróis
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