'Feud: Bette e Joan' e o ageismo que Hollywood precisa expurgar


Quando a temporada Bette e Joan da série no formato antologia Feud tem início estamos na década de 1960. As protagonistas do primeiro confronto apresentado na série, Joan Crawford e Bette Davis, são duas das maiores referências do cinema americano. Contemporâneas, Crawford e Davis nunca contracenaram mas rivalizaram nos bastidores de Hollywood a atenção de um público que "fetichizava" as divas da interpretação a cada produção que as atrizes protagonizavam. Na proximidade dos setenta anos de idade, Davis e Crawford encontraram dificuldade para retornar ao cinema mesmo tendo um currículo tão glorioso e já terem no bolso a cobiçada estatueta do Oscar de melhor atriz (Davis premiada duas vezes, uma por Jezebel e outra por Perigosa, já Crawford vencera por seu desempenho em Alma em Suplício). Eram tempos de exaltação do loiro platinado e do corpo voluptuoso de Marilyn Monroe e dos traços delicados e simétricos do rosto de Natalie Wood.

Diante da esnobada dos grandes estúdios, principalmente da Warner que fora sua casa durante tantos anos, Davis resolve investir no teatro. Crawford, por sua vez, igualmente na "gaveta", segue decidida em sua empreitada para encontrar algum material de inspiração para um roteiro cinematográfico que traga uma protagonista na sua faixa etária. Joan encontra então O que Aconteceu com Baby Jane?, romance de Henry Farrell que narrava a complicada relação entre as irmãs Blanche e Baby Jane Hudson após a primeira conseguir ser mais bem sucedida em sua carreira de atriz do que a segunda, cuja fama estagnou no seu status de estrela infantil. Crawford sabia que para fazer Baby Jane acontecer era preciso mais do que um diretor de confiança como Robert Aldrich ao seu lado, era importante fazer com que a realização do filme fosse um acontecimento e para criar esse evento midiático que ajudaria a retorná-la ao lugar que era seu de direito seria necessário convidar outra estrela para co-protagoniza-lo. Diante de toda a trajetória de Crawford, quem melhor do que Bette Davis para dividir a tela?

Durante anos, Crawford e Davis foram objeto das estratégias de marketing de Jack Warner, gerindo uma dinâmica interna do estúdio que ajudou a fomentar a rivalidade das atrizes. Como exposto no segundo episódio da temporada, The Other Woman, quando Crawford chegou a Warner, ela veio como medida da empresa para conter os "ataques de estrelismo" de Mrs. Davis. Tratava-se de uma forma que Warner encontrou de punir os prejuízos que as demandas de Davis nos sets dos seus filmes estavam causando ao estúdio. Com o tempo, diversos roteiros que naturalmente iam para Bette, passaram para as mãos de Crawford. Agitando ainda mais a tensão nos bastidores entre as duas, Crawford vencera uma estatueta do Oscar com Alma em Suplício, papel que havia sido recusado por Bette. A reunião de duas figuras que já tinham esse histórico em um mesmo filme parecia mais um prato cheio para a Warner, que faria uma exceção trazendo as veteranas de volta para debaixo da sua asa ao expor todo o conflituoso processo de realização do longa e criar um ambiente repleto de animosidade nos sets de O que Aconteceu com Baby Jane?.


A partir de toda essa investida inicial, a criação de Ryan Murphy (veterano na concepção de ótimas antologias como American Horror Story e American Crime Story que teve sua primeira temporada com O Povo contra O.J. Simpson), Jaffe Cohen e Michael Zam fazem de Feud: Bette e Joan um produto que extrapola a mera curiosidade por picuinhas de bastidor hollywoodiano. O segmento da série procura entender não só como o ambiente de alta competitividade foi estimulante para Davis e Crawford na composição das suas personagens em Baby Jane, mas também evidencia como o atrito entre ambas foi consequência de uma Hollywood sexista e ageista assimilada pelas duas inclusive e, como em outros casos, tornou a relação das atrizes marcada pela disputa e não pela colaboração.

O episódio de estreia da série, Mommie Dearest, introduz o início do  confronto entre as atrizes, mas também a dificuldade que Davis e Crawford tiveram em dado momento de suas carreiras para encontrar espaço na agenda dos grandes estúdios ou na maneira como figurões da indústria se referiam a ambas, aqui personificados por Jack Warner (da Warner Bros., vivido por Stanley Tucci), que por sinal, junto com Aldrich e com a imprensa plantaram o conflito nos sets de Baby Jane com o intuito de angariar publicidade para o filme, como revela o segundo episódio da temporada. Em Feud: Bette e Joan está em voga o mesmo sistema que décadas atrás, e até hoje, estimula e constrói mitologias em torno das guerras de estrelismo nos sets de produções que promovem o encontro de grandes atrizes, além de tratar dessa obsessão de Hollywood pela juventude (quando aplicada ao sexo feminino, diga-se de passagem), alimentando vaidades, rivalidades forjadas ou reais e inveja, que no fundo só servem para encobrir a fragilidade da alma dessas mulheres atemorizadas pela possibilidade de um dia virem a ser esquecidas, perdendo tudo aquilo que conquistaram por méritos que estão além das aparências.

Feud: Bette e Joan é marcado por uma crítica a indústria e Murphy e seus parceiros de criação não usam meias palavras para "cutucar" feridas e falar de uma questão que segue problemática nos dias atuais, a pressão sobre a aparência (jovial, vale sublinhar) das mulheres, ou seja, quem elas são autorizadas a ser por Hollywood e pelo público e até quando isso é conveniente - no caso, até surgir uma sucessora mais jovem, bonita e talentosa. E isso é mais angustiante quando as atrizes em questão possuem uma genuína preocupação com suas performances e em mostrar ao público àquilo para o qual suas carreiras foram forjadas. Infelizmente, todas são tragadas por demandas que são próprias do meio em que estão inseridas e inevitavelmente entram em choque com tais preocupações. É o caso de Bette e Joan.

 E é um sistema que encontra manifestações cada vez mais sofisticadas. Basta recordarmos da reação das pessoas quando a atriz Renée Zellweger, na casa dos quarenta anos, surgiu em um evento de moda com as marcas de expressão no rosto alteradas por força dos procedimentos cirúrgicos que realizara. É uma lógica perversa, incorporada prontamente por estas mulheres, afinal, elas precisam sobreviver nesse sistema extremamente competitivo, prolongando o máximo que podem sua juventude para conseguir papeis e serem cobiçadas pelos grandes projetos antes que uma new girl como Jennifer Lawrence ou Emma Stone lhes retire todo o status e a dignidade de ser reconhecida pela sua própria profissão. É uma imposição de prolongamento da juventude incorporada por elas pela força dos estúdios ou dos diretores (a maioria deles homens, por sinal), mas também pelo público que cobra um cuidado excessivo com a aparência, um bom desempenho no red carpet e na próxima capa da Vogue, aponta quando surgem as primeiras rugas nas imagens projetadas no ecrã e que, quando recebe esse esmero com a manutenção artificial da jovialidade como recompensa, condena, faz chacota, trata como aberração e destina a carreira de algumas delas ao esquecimento na maturidade. É exatamente isso que pode acontecer com Renée haja vista a maneira como trabalhos recentes como O Bebê de Bridget Jones e Versões de um Crime foram recebidos e os comentários de gente aparentemente interessada em cinema que foram tecidos sobre a atriz. Já estiveram na mesma situação de Renée por motivo semelhantes Meg Ryan, Melanie Griffith e Faye Dunaway. 

Manchete de uma revista de fofoca sobre a aparência da atriz Renée Zellweger: "A chocante cirurgia plástica de Renée".
Mesmo atrizes que nunca se submeteram a procedimento cirúrgico algum, como a própria Susan Sarandon que vive a Bette Davis em Feud, encontram dificuldade para conseguir papéis à sua altura ou levar adiante produções encampadas pelas mesmas quando não têm mais os traços da juventude como cartão de visitas. Basta lembrar como até pouco tempo atrás, depois de vencer sua estatueta do Oscar por Os Últimos Passos de um Homem, Sarandon só era vista nos cinemas como figurante de luxo em filmes como Tudo Acontece em Elizabethtown e Speed Racer, interpretando papeis que não lhe faziam jus e que poderiam ser adjetivados como "a mãe do protagonista da história" (um jovem ator do sexo masculino, por sinal). Jessica Lange, a outra estrela da serie, também passou por momentos difíceis após vencer duas vezes a estatueta do Oscar, uma por Tootsie e outra por Céu Azul nos anos de 1980 e 1990, sendo resgatada de um limbo qualquer por Ryan Murphy e Brad Falchuk em 2011 quando a chamaram para protagonizar American Horror Story. E a lista é enorme e a cada ano que passa ganha mais integrantes, cada vez mais jovens, fazendo a gente ainda se espantar quando Anne Hathaway, aos 34 anos, recém vencedora do Oscar por Os Miseráveis (2013), surge em entrevistas afirmando que está passando por dificuldades para encontrar papeis para sua idade. 

A atriz Anne Hathaway na ocasião da sua vitória no Oscar pelo seu desempenho em Os Miseráveis.
Os atores estão longe de passar pelos mesmos problemas que suas colegas, mantendo seus salários extratosféricos independente da idade, conseguindo interesses amorosos em seus filmes cada vez mais jovens que eles e mantendo uma carreira produtiva independente do estágio em que sua vida se encontra. Atores que iniciaram sua carreira entre os anos de 1980 e 1990 como Tom Cruise e Brad Pitt seguem na ativa e em produções importantes para os grandes estúdios de cinema, enquanto atrizes que iniciaram suas trajetórias aproximadamente na mesma época que eles como Julia Roberts e Nicole Kidman têm migrado para a TV para encontrar bons papeis e obras que façam jus a suas trajetórias, os pratos da casa (os principais filmes lançados no ano) da Fox, Warner ou Universal parecem não mais interessados em seus nomes. Atores estão imunes ao tempo, atrizes não. E isso não é questão de falta de talento, boa ou má administração da carreira é uma questão de gênero e de idade.

Fora Meryl Streep, que por uma série de fatores conseguiu driblar toda essa regra, mas somente após O Diabo veste Prada, que outro grande nome feminino conseguiu se manter sem enfrentar tais dificuldades e surgir aqui ou ali com algum desempenho de destaque prometendo um comeback que muitas vezes não chega? Glenn Close, Michelle Pfeiffer, Sharon Stone... Todas substituídas por uma nova estrela do momento gerando um círculo vicioso que se alimenta da novidade e de vitórias no Oscar que simbolizam esse desejo de enaltecer e colocar em um pedestal a babe do momento a qualquer custo  (Gwyneth Paltrow, Reese Witherspoon, Jennifer Lawrence, Emma Stone).  Assim, idade e gênero, seguem como verdadeiros problemas da indústria cinematográfica (algo que parece pouco atingir a TV, que por sinal, recepciona muito bem essas atrizes maduras) e como algo que dificilmente vai acabar, haja vista a tendência cada vez maior dos estúdios apostarem em adaptações de super-heróis, histórias adolescentes e juvenis etc., nichos  de produção que não são terreno propício para mudar esse cenário e nem desejam, na verdade.

Para além dos elogios já traçados por colegas a condução das temáticas de Feud: Bette e Joan e dos desempenhos arrebatadores de Susan Sarandon, impecável como Bette Davis, e Jessica Lange, a veiculação da primeira temporada de Feud parece ser uma ótima oportunidade para que certos tabus sejam discutidos (e nunca é tarde ou vão trazer estas questões a público). A TV tem sido o espaço  para esse tipo anarquismo e crítica. Seguindo a linha de O Povo contra O.J. Simpson: American Crime Story, também do Ryan Murphy, Feud: Bette e Joan é bem sucedido por ir além das notas de curiosidades sobre duas figuras públicas e seus atritos. Assim como o tratamento conferido ao caso O.J. Simpson como uma consequência dos problemas enfrentados pela comunidade negra com a polícia de Los Angeles, o atravessamento da mídia na condução de crimes envolvendo celebridades e o sexismo nas esferas do Direito, Ryan Murphy e sua equipe querem esmiuçar questões maiores em Feud: Bette e Joan prometendo uma temporada que deseja tratar com a complexidade merecida o encontro de dois ícones do cinema não simplificando sua trama pela marca pejorativa da "picuinha feminina pelo protagonismo nas telas". Existe muito mais por trás da troca de farpas entre Bette e Joan nos bastidores de Baby Jane e Feud vai fundo na questão.

Feud: Bette e Joan vai ao ar todo domingo às 22h pelo canal FX.

Assista a um trailer da temporada Bette e Joan da série Feud:

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Agenda,14,Checklist,11,Cinco Atos,1,Crítica,315,DVD & Blu-Ray,6,É Tudo Verdade,3,Editorial,2,Ensaios e Artigos,19,Entrevista,2,Extras,9,Listão,34,Matéria Especial,28,Mostra SP,6,Notícias,39,Podcast,3,Prévia,77,Radar Crítico,20,Recomendações,130,Resenhas,326,Rewind,15,TV & Streaming,80,Vídeo,10,Vilões que Amamos Odiar,1,
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Chovendo Sapos: 'Feud: Bette e Joan' e o ageismo que Hollywood precisa expurgar
'Feud: Bette e Joan' e o ageismo que Hollywood precisa expurgar
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