Parênteses. Quebrando a impessoalidade da crítica. Em 2016, o Chovendo Sapos completa dez anos de existência. Manter um espaço como esse ativo por tanto tempo e com uma produção frequente e atual com aquilo que está em cartaz no circuito brasileiro não é fácil. Nos esbarramos com desafios no caminho: o ritmo e as demandas da vida (afinal, as contas não são pagas pelo que se tem de retorno com os textos daqui) e o compromisso de dar conta em breves linhas dos filmes que assistimos. A tarefa é árdua. Talvez as análises saíssem muito mais densas e coerentes com o que de fato se pensa ou sente sobre o filme se esse calendário louco que impomos aos lançamentos do circuito e às demandas do próprio público leitor dessem o devido tempo para o amadurecimento das ideias sobre a obra. Não dão. E, muitas vezes, com o tempo e o amadurecimento das nossas reflexões em revisões sobre os filmes e mesmo em conversas com amigos e colegas de atividade, nossas percepções acabam sendo outras ou temos leituras mais complexas do que aquelas palavras iniciais.
A sensação que Aquarius traz para este vos escreve é justamente a do receio de não fazer jus à obra que foi vivenciada por meio de uma das experiências cinematográficas mais fortes de 2016. Em seu novo filme, Kleber Mendonça Filho dá continuidade ao seu projeto cinematográfico, um cinema com preocupações temáticas específicas: as neuroses urbanas, o crescimento das cidades, a violência silenciosa e cotidiana das metrópoles, o que nos foi legado de segregação social pelas relações com o passado. Tais temas, estão presentes em curtas como Eletrodoméstica, Recife Frio e culminam com o longa de estreia do diretor, O Som ao Redor. O cineasta tem um apreço admirável pela forma da narrativa cinematográfica, colocando à disposição da sua história toda uma cartela de recursos que conferem elegância e simbologia aos seus enquadramentos. Acontece que, até mais do que conseguimos perceber e sentir no filme-mosaico representado por O Som ao Redor, Aquarius tem um fator humano que se impõe na carreira do cineasta e faz toda a diferença no resultado do filme. Ele tem como enfoque a história de uma personagem singular, Clara, interpretada com intensidade por Sonia Braga.
Em Aquarius, Clara é uma jornalista aposentada moradora do edifício Aquarius desde a década de 1970. Ela é constantemente abordada por uma grande construtora interessada em demolir o edifício, no qual, atualmente, é a única residente, para erguer um desses grandes condomínios de luxo que se multiplicam pelas cidades. Insistindo no projeto de "modernizar" o Aquarius, um dos jovens engenheiros da construtora, herdeiro de um dos proprietários, cria maneiras de "convencer" Clara a ceder aos apelos da empresa. A personagem é testada ao longo de todo o filme e passa por um processo de reflexão sobre a passagem do tempo, de afirmação do seu lugar no mundo e de proteção do espaço que batalhou tanto para conquistar, mas que é invadido de maneira predatória por terceiros que já perderam a sensibilidade para reconhecer, respeitar e aprender com a sua experiência. Assim, com Aquarius, Kleber tem a intenção de apresentar a história dessa mulher, mas também fazer dela uma alegoria para as transformações dos espaços urbanos através da gananciosa especulação imobiliária, que, não à toa, torna-se um tormento para a personagem ao longo de todo o filme e é metaforizado como um câncer.
Em seus três atos, todos eles recebendo títulos que evidenciam os propósitos de centrar suas atenções na sua protagonista ("O Cabelo de Clara", "Os Amores de Clara" e "O Câncer de Clara"), Aquarius nos convida a conhecer uma personagem fascinante defendida com muita fibra e dignidade por Sonia Braga, que, enfim, tem o espaço que lhe é de direito em uma produção do seu próprio país. Braga exercita seu talento através de uma mulher muito forte constantemente interpelada pelo tempo e pela constatação do risco da perda do seu espaço, não apenas físico, mas como sujeito, que, como qualquer outro, tem direito de ser ouvido, de ser amado, de ter suas ideias e experiências respeitadas...
Clara é uma personagem que está sempre lembrando aos outros que possui direitos, ainda que tudo que lhe é externo faça questão de impor a ela o risco de perde-los ou mesmo a impossibilidade de tê-los. Ao longo de toda projeção, em meio a recordações dos seus álbuns de fotos de família ou às canções que elege ouvir da sua seleta coleção de LPs, Clara realiza esforços para demarcar o seu lugar e reforçar a sua condição humana. Braga consegue traçar essa batalha pessoal e cotidiana de Clara com muita sutileza e sensibilidade, seja na firmeza com que trata em determinado momento o jovem engenheiro da construtora interpretado por Humberto Carrão ou mesmo quando tem uma discussão com sua filha (Maeve Jinkings) em um almoço de domingo, seja no delicado momento em que se reconhece na jovem namorada do sobrinho.
Clara é uma personagem que está sempre lembrando aos outros que possui direitos, ainda que tudo que lhe é externo faça questão de impor a ela o risco de perde-los ou mesmo a impossibilidade de tê-los. Ao longo de toda projeção, em meio a recordações dos seus álbuns de fotos de família ou às canções que elege ouvir da sua seleta coleção de LPs, Clara realiza esforços para demarcar o seu lugar e reforçar a sua condição humana. Braga consegue traçar essa batalha pessoal e cotidiana de Clara com muita sutileza e sensibilidade, seja na firmeza com que trata em determinado momento o jovem engenheiro da construtora interpretado por Humberto Carrão ou mesmo quando tem uma discussão com sua filha (Maeve Jinkings) em um almoço de domingo, seja no delicado momento em que se reconhece na jovem namorada do sobrinho.
Saído de um longa como O Som ao Redor, que exercitava nossa reflexão sobre questões sociais e de classe legadas por processos históricos no Brasil e como isso se refletia nas estrutura física das cidades e nas dinâmicas entre os diversos moradores de um condomínio fechado do Recife, Kleber Mendonça Filho acentua o seu olhar para o sujeito em Aquarius. Ainda que a preocupação com o macro e as questões sociais que sempre foram caras ao cineasta estejam presentes em Aquarius, o que se destaca é o seu material humano personificado em Clara. Melhor, em Aquarius as preocupações de Mendonça Filho com o macro dialogam e são atravessadas por um interessante estudo de personagem. Em Aquarius, conhecemos Clara no íntimo da sua biografia e emoções, acompanhamos os diversos estágios da personagem, sabemos da sua história, estamos muito próximos dela. O realizador é ainda mais feliz por encontrar em Sonia Braga a protagonista ideal para conduzir o espectador nessa jornada apaixonante e auto analítica que é conhecer Clara.
Aquarius, 2016. Dir.: Kleber Mendonça Filho. Roteiro: Kleber Mendonça Filho. Elenco: Sonia Braga, Humberto Carrão, Maeve Jinkings, Irandhir Santos, Barbara Colen, Carla Ribas, Paula De Ranor, Fábio Leal, Buda Lira. Vitrine, 142 min.
Assista ao trailer do filme:
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