(Crítica) A Garota do Livro


The Girl in the Book, 2015. Dir.: Marya Cohn. Roteiro: Marya Cohn. Elenco: Emily VanCamp, Michael Nyqvist, Ana Mulvoy-Ten, David Call, Ali Ahn, Michael Cristofer, Talia Balsam, Mason Yam, Jordan Lage. Playarte, 96 min.

Primeiro longa-metragem da diretora e roteirista Marya Cohn, A Garota do Livro é um filme ambientado no universo editorial norte-americano que aborda temas delicados e que extrapolam as próprias possibilidades temáticas que a história sugere, ganhando contornos inequivocamente universais. O longa tem como gatilho da sua trama central a delicada relação entre uma jovem aspirante a escritora filha de um editor de livros e um autor maduro, amigo e cliente do seu pai, que descobre o seu talento e começa a ser uma espécie de tutor do seu primeiro trabalho. Esse relacionamento entre a adolescente e seu mestre traz consequências drásticas para a vida da personagem já que a acompanhamos também em sua maturidade quando o seu passado se faz presente tanto no seu trabalho como editora, quanto na maneira como ela conduz seus relacionamentos pessoais.

Existe no entorno de toda essa história um tema-tabu que sua realizadora pretende discutir e faz isso de maneira muito eficiente e simples, a pedofilia, tanto as consequências da mesma na vida adulta de suas vítimas, quanto a possibilidade de superação desse trauma. É por essas duas vias de tratamento dessa temática que Cohn aposta as fichas do seu roteiro e da sua direção e é por ambas que A Garota do Livro se apresenta ao espectador como uma grande surpresa, tendo em vista o silêncio que o acompanha em sua chegada às salas de cinema do país (o filme não teve uma repercussão barulhenta lá fora, não tem estrelas do primeiro escalão de Hollywood em seu pôster, não é dirigido por um cultuado cineasta etc.). Cohn não faz do seu filme um tratado complexo sobre sua temática, tampouco a utiliza para fazer um exercício hermético típico de um cinema independente norte-americano querendo ser cinema europeu. A diretora recorre a uma tratamento "tradicional" calcado em uma execução precisa, simples e eficiente e o resultado é dos melhores.

Um dos pontos altos de A Garota do Livro é a maneira como a realizadora "costura" a sua história, tornando o filme formalmente bem acabado. A cineasta aposta na junção entre os flashbacks da sua protagonista e sua história no tempo presente, tornando as duas linhas temporais importantes, fluidas, harmônicas e instigantes ao espectador. Assim, o filme tem sua trama desenvolvida sob o prisma de um diálogo muito bem executado entre o passado e presente, algo que nem sempre é articulado com tanta habilidade assim no cinema. É notável também como a diretora consegue trazer para sua história o peso e a gravidade que o tema requer sem apelar para construções manipulatórias de personagens ou situações - o escritor vivido por  Michael Nyqvist, por exemplo, não é um "vilão afetado", conseguindo ser repulsivo por outras vias - e também como ela é capaz de oferecer um desfecho coerente com a sua proposta através de uma possibilidade de superação da protagonista sem cair na armadilha do final "em aberto", algo que outro realizador menos habilidoso ou mais pretensioso poderia cometer. Há também interessantes desempenhos do seu grupo de atores central, que, sem exceções, sustenta os propósitos da sua diretora: Emily VanCamp, intérprete da protagonista na fase adulta, Michael Nyqvist e a jovem Ana Mulvoy-Ten, que vive a personagem de VanCamp na adolescência, estão ótimos.

Estabelecendo um paralelo interessante com a notória história de bastidor que envolve a concepção de Alice no País das Maravilhas pelo escritor Lewis Carroll e sua relação com uma garota que levava o mesmo nome da protagonista da sua obra mais conhecida, Alice, A Garota do Livro é um filme necessário e que expõe uma situação muitas vezes negada no mundo intelectual sob o escudo imaculado da inspiração artística e do gênio-criador. Contudo, além de expor verdades indesejadas, e que merecem sempre ser expostas e denunciadas, A Garota do Livro é um filme eficiente em sua execução e que não precisa recorrer às rotineiras afetações do cinema independente norte-americano para realçar a relevância do seu discurso, tampouco a boa execução da sua linguagem cinematográfica. Para fazer um bom filme como esse, a diretora Marya Cohn precisou apenas fazer o que tinha que fazer, contar uma história com planejamento e propósitos bem definidos da maneira mais precisa possível.



Assista ao trailer: 


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Chovendo Sapos: (Crítica) A Garota do Livro
(Crítica) A Garota do Livro
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