Dos cultuados cineastas norte-americanos contemporâneos, Todd Haynes talvez seja um dos que mais dê preferência a histórias centradas em fortes personagens femininas, e talvez também seja um dos que mais saiba manejá-las. De Longe do Paraíso à minissérie da HBO Mildred Pierce, sem falar em outros trabalhos do diretor como Mal do Século, Não estou lá e Velvet Goldmine, que abordam questões que estão fora dessa esfera temática, o realizador dimensiona como poucos os reflexos dos preconceitos de uma sociedade machista nas esferas subjetivas das suas protagonistas. Convidado por Cate Blanchett para dirigir um projeto que há anos a atriz queria ver ser levado para o cinema, a adaptação de O Preço do Sal, livro da escritora Patricia Highsmith (de O Talentoso Ripley), Haynes retorna a esse tipo de narrativa que lhe é tão familiar e realiza Carol.
Baseado no livro de Highsmith, longa traz o romance entre a jovem Therese Belivet, uma vendedora de uma loja de departamento interpretada por Rooney Mara, com a sofisticada dona de casa Carol Aird, papel de Cate Blanchett, nos EUA do início da década de 1950. Carol passa por um tumultuado processo de divórcio com o pai da sua filha, enquanto Therese começa a se descobrir como mulher a partir da sua relação com ela. O amor entre as duas começa a passar por turbulências quando Carol enfrenta alguns problemas com o seu marido a respeito da guarda da filha e todas as convenções e preconceitos sociais da época passam a ser uma ameaça para a felicidade de ambas.
À primeira vista, Carol pode parecer um romance frio sobre o relacionamento entre duas mulheres, já que muita pouca coisa é dita entre elas sobre sentimentos e não há momentos de arrebate emocional. Ao contextualizarmos a obra ao período em que ela se passa, entendemos as razões para que as emoções e os desejos das personagens, sobretudo os de Therese que está descobrindo a própria sexualidade, fiquem em constante estado de tensão e nas entrelinhas. Se em pleno século XXI já é complicado assumir uma relação, se descobrir e se aceitar como homossexual, imaginem na década de 1950. Nesse sentido, Haynes é impecável na condução do seu romance, permitindo não apenas que tenhamos uma dimensão da maneira como a sociedade tratava o assunto na sua época, mas lançando um olhar para as consequências disso na relação e na própria trajetória das suas duas personagens, sem apelar para didatismos históricos.
Sem sensacionalismo ou estardalhaço sobre o assunto, Todd Haynes conduz Carol com muita elegância, permitindo que o filme contenha uma reflexão sobre a homossexualidade e as consequências individuais da reprovação social sobre o assunto, sem apelar para discursos e sequências redundantes. O melhor de tudo é que o realizador consegue tratar essa questão sem perder de vista a relação entre Carol e Therese, o grande foco de toda a narrativa do filme. Assim, Carol mostra-se como uma obra socialmente contundente ao abordar de maneira delicada o preconceito social como um obstáculo para suas personagens, ao mesmo tempo em que estabelece muito bem um pacto com gêneros ou escolas cinematográficas às quais o diretor costuma se filiar como o melodrama, algo que ele já havia feito muito bem em Longe do Paraíso e Mildred Pierce. Em suma, assim como fez nesses trabalhos citados, Haynes utiliza em Carol o gênero como uma forma de investigar como a sociedade cria mecanismos para jogar indivíduos em calabouços, podando seus sentimentos, sua liberdade e impossibilitando a própria felicidade.
Como costuma ser uma regra em todos os filmes de Todd Haynes, Carol é um filme marcado por poderosas performances dos seus atores. Dessa vez, Haynes permite que Cate Blanchett e Rooney Mara nos conduzam de maneira sensível à redentora relação entre Carol Aird e Therese Belivet. Blanchett talvez tenha uma das melhores performances de sua carreira no filme. Com uma personagem que evita que a atriz incorra em um overacting, algo que, por vezes, a australiana acaba cedendo, Blanchett faz de Carol Aird uma figura etérea, provavelmente por um mecanismo de defesa, mas muito sedutora e repleta de dignidade. Já Rooney Mara conduz de forma impecável o processo de descoberta da sexualidade e do amor de Therese Belivet. Mara tem momentos maravilhosos no filme, sobretudo quando coloca em evidência as incertezas e inseguranças da personagem sobre o que sente verdadeiramente por Carol. Entre os dois desempenhos maravilhosos das protagonistas, estão outros excelentes atores que são fundamentais para a história e que também merecem a menção, entre eles Sarah Paulson, que merecia mais atenção por sua discreta interpretação como uma ex-namorada de Carol, e Kyle Chandler, ótimo em diversos momentos como o marido da personagem de Blanchett.
Na filmografia de Todd Haynes, Carol pode não apresentar o mesmo ímpeto vanguardista de obras como Longe do Paraíso ou Não estou lá, mas demostra um diretor que sempre conduz com sensibilidade questões que lhe são caras em formatos conhecidos. Natural em suas próprias convicções e no seu caráter humanista, Carol é um romance calibrado pelas excelentes performances de Cate Blanchett e Rooney Mara e pelo olhar de um diretor que consegue entender a fundo as suas personagens sem perder de vista a elegância narrativa. Carol é uma belíssima extensão da própria carreira de Todd Haynes, um diretor que como poucos sabe utilizar as convenções de um gênero narrativo em prol de questões sociais que estão em suas entrelinhas mas que se impõem como bandeiras necessárias através das batalhas pessoais empreendidas por suas personagens para simplesmente ser o que são e buscar aquilo que todo ser humano merece: a felicidade.
Carol, 2015. Dir.: Todd Haynes. Roteiro: Phyllis Nagy. Elenco: Cate Blanchett, Rooney Mara, Sarah Paulson, Kyle Chandler, Jake Lacy, John Magaro, Cory Michael Smith, Kevin Crowley, Nik Pajik, Carrie Brownstein, Trent Rowland. Maré Filmes, 118 min.
COMENTÁRIOS