Se não esbarrar em uma certa rigidez da Academia de Cinema de Hollywood, o drama Beasts of no Nation promete desestabilizar o reinado de muitos estúdios que sempre se gabaram de impor as cartas nos jogos das premiações cinematográficas do final do ano e trazer a primeira indicação ao Oscar para a Netflix. Promover alterações dentro da própria indústria, o longa parece já ter promovido - ainda que tenha sido uma transformação tardia tendo em vista que para a televisão a estratégia de lançamento de Beasts of no Nation é indiferente. O filme de Cary Fukunaga é a primeira produção original da Netflix no formato, sendo lançado simultaneamente (nos EUA) nos cinemas e no site da empresa. Para quem andou fora do planeta Terra nos últimos anos, a Netflix é uma empresa especializada na veiculação de obras audiovisuais via streaming, uma espécie de locadora virtual. Entre seriados, a companhia já produziu histórias originais como Orange is the New Black, Sense 8 e House of Cards, que desestruturaram relativamente o reinado da HBO na preferência do público e nas indicações ao Emmy, principal premiação da TV americana. Seria Beasts of no Nation, alardeado pela crítica especializada como um sério candidato ao Oscar, capaz de destronar a Weinstein Company, a Fox, a Warner e tantas outras empresas que dominam as premiações desde que o cinema era coisa exclusiva das salas de exibição?
Qualquer diagnóstico sobre a trajetória de Beasts of no Nation daqui pra frente é precoce e muita reviravolta promete ser dada até o anúncio de prêmios como o Globo de Ouro, SAG Awards, Oscar e cia. A batalha da Netflix será árdua, já que, ao contrário da TV, o cinema sempre se mostrou inflexível e tradicional diante das mudanças da indústria. As reações e a tentativa de convergência sofrem resistência de setores mais conservadores, basta pensarmos, por exemplo, na crise severa que a pirataria causou à indústria e nos discursos de conservação de antigas formas de se pensar o cinema que se proliferaram na ocasião e estão ai até hoje. É possível que a Netflix trave uma verdadeira cruzada durante a temporada e que se multipliquem as defesas em prol do culto cinéfilo nas salas de projeção, encarando Beasts of no Nation como um grande mal à sétima arte. Aliás, isso já está acontecendo pontualmente, basta ler algumas críticas contrárias ao filme de Cary Fukunaga.
Particularmente, Beasts of no Nation não fere em nada minha preferência pelo contato com uma obra cinematográfica na tela grande. O que desejo pontuar, antes de adentrar na análise do filme em si, é que é extremamente saudável a multiplicidade de maneiras de se ver um longa da sua importância. Democratiza o cinema, potencializa o processo de socialização da obra, torna o filme objeto de um debate de muitos ao invés de restringi-lo aos guetos de cinéfilos ratos de cineclube que encaram, equivocadamente, o filme apenas como arte.
Feita esta longuíssima observação, vamos ao longa. Beasts of no Nation conta a história de Agu (Abraham Attah), um menino africano que presencia a morte de seu pai e irmão durante uma ação de militares na guerra civil. Agu é recrutado por um severo comandante (Idris Elba) que forma um exército de crianças preparadas para resistir à invasão inimiga e matar o grupo rival à sangue frio. No decorrer do tempo, Agu vai percebendo o tipo de ser humano que ele se transformou a partir do momento em que a guerra entrou na sua vida.
Cary Fukunaga (da primeira temporada de True Detective e da adaptação Jane Eyre, com Mia Wasikowska e Michael Fassbender no elenco) traz uma história de uma realidade marcada pela barbárie que devasta tudo ao seu redor: ética, cidades, vidas, famílias e principalmente a inocência. A herança de Cidade de Deus está presente em todo o filme de Fukunaga. No filme de Fernando Meirelles, acompanhávamos a formação de um psicopata através da trajetória de Zé Pequeno e sua completa contraposição representada por Buscapé, jovem que mantém-se afastado do crime mesmo vivendo sua realidade 24 horas por dia. A diferença de Beasts of no Nation para Cidade de Deus é que o filme de Fukunaga apresenta este confronto na figura de um único personagem que oscila entre crises de consciência a cada sequência em que se depara com o inferno do qual acabou aceitando fazer parte. Este personagem é interpretado com muita maturidade pelo jovem Abraham Attah, que carrega o delicado e conflituoso arco dramático de Agu nas costas.
Estas comparações com Cidade de Deus são pertinentes para que pontuemos que Cary Fukunaga não "descobriu a pólvora". Beasts of no Nation é uma variação desse cinema que busca entender determinadas mazelas sociais desenhado a trajetória do seu protagonista de maneira épica, dramaticamente empática. Quando tal comparação é feita não é para desmerecer o trabalho de Fukunaga, mas para localizá-lo no cenário contemporâneo. Beasts of no Nation é um filme de fôlego, inspirado na utilização dos recursos da linguagem cinematográfica e narrativamente eficiente. As transformações em Agu são mostradas ao longo do filme de maneira que fiquemos chocados e enternecidos com a infância lhe escapando pelos dedos. Muito mais do que realizar um tratado sociológico em torno do seu tema, Fukunaga faz de Beasts of no Nation uma obra universal que trata da natureza humana sem estabelecer compromissos com o tempo ou com o espaço dos seus acontecimentos. Isso é bastante positivo no filme.
Com um excelente elenco - é preciso dizer que Idris Elba está formidável na pele do monstruoso comandante que recruta Agu -, Beasts of no Nation é um atestado da competência de condução narrativa de Cary Fukunaga. Trata-se, contudo, de um filme que promete ficar marcado na história do cinema muito mais pelo seu contexto de produção do que por uma inventividade ou vanguardismo estético. Cinematograficamente, o longa de Cary Fukunaga tem precedentes e referenciais que de maneira alguma o inferiorizam, pelo contrário, reforçam seus valores ao vinculá-lo a um determinado olhar sobre a humanidade. Agarrando-se na emoção e na empatia do público com a história de uma infância roubada, Beasts of no Nation é um longa satisfatório que mexe com a sensibilidade de qualquer espectador.
Beasts of no Nation, 2015. Dir.: Cary Fukunaga. Elenco: Abraham Attah, Idris Elba, Emmanuel Nii Adom Quaye, Emmanuel Affadzi, Ama K. Abebrese, Kobina Amissah-Sam, Fred Nii Amugi, Francis Weddey,
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