Precisou passar quase dois anos para Expresso do Amanhã ser lançado no Brasil. As razões do atraso só a confusa logística das distribuidoras brasileiras explica. Nesse jogo de alterações constantes de data que foi Expresso do Amanhã, a certeza que temos é a completa falta de timing da sua estreia já que, com a rapidez com que cada vez mais temos acesso ao que vem de fora seria fundamental encurtar as janelas dos lançamentos internacionais no Brasil. A verdade é que Expresso do Amanhã chega às nossas salas quando a maior parte dos cinéfilos brasileiros já assistiram ao filme por vias alternativas em função da incerteza acerca de uma resposta definitiva sobre sua estreia nos cinemas. E nem adianta culpar a internet, novos tempos exigem novas estratégias de lançamento para barrar esse tipo de concorrência que, com o perdão das palavras rudes, é imbatível. Dito isso, vamos ao filme que é, sem exagero, espetacular.
Baseado em uma HQ francesa chamada Le Transperceneige, Expresso do Amanhã é ambientado em um futuro pós-apocalíptico no qual o ecossistema foi destruído e as tentativas de recuperação climática por ação do homem não deram certo. Agora todos vivem em uma implacável era glacial e os sobreviventes desse cenário acabam mantendo-se vivos presos em um trem dividido em vagões que acabaram abrigando castas sociais: a elite possui diversos privilégios e ocupa os vagões da frente enquanto ao fundo estão os mais pobres, mantidos em condições precárias. Um dia, o grupo do último vagão empreende um plano para tomar o poder dos mais abastados e equilibrar as condições de vida no trem. Para conseguirem o que querem, eles devem passar por todos os vagões até chegarem àquele em que vive o homem por trás de toda a desigualdade instalada no trem, o Sr. Wilford.
Expresso do Amanhã é o primeiro trabalho em língua inglesa do diretor sul-coreano Joon-ho Bong, responsável por filmes primorosos como O Hospedeiro e Mother - A Busca pela Verdade, uma estreia, é preciso que se diga, que não deixa em nada a desejar, sobretudo quando os exemplos cotidianos nos mostram o quanto experiências de realizadores em línguas não-nativas são conturbadas. Nesse caso, facilita o controle que Joon-ho Bong tem em Expresso do Amanhã, não apenas por ter sido o roteirista do filme, mas também por ter na produção pessoas que entendem o seu modo peculiar de fazer cinema (o realizador também sul-coreano Chan-wook Park é um deles). Assim, o que vemos é sim um filme comercial e palatável às plateias com os mais diversificados repertórios, com determinados estratagemas do cinemão norte-americano, mas tudo com muito pulso e a assinatura de Joon-ho Bong, que concebe uma história de trama intrincada, com uma linguagem audiovisual segura e bem aplicada e que está muito longe de ser um esquecível caça-níqueis.
O filme se apresenta como um eficiente filme-pipoca, mas mostra uma faceta mais interessante ainda quando demonstra o seu potencial como alegoria sociológica, abordando temas eternamente contemporâneos como as nossas relações com o poder, a corrupção e a desigualdade social. Apesar de ter um elenco diversificado, Expresso do Amanhã não é um filme no qual esse ou aquele ator se destaque é o tipico "filme de elenco", portanto cada personagem é peça fundamental de uma engrenagem que é mais importante como coletivo do que individualmente, entre os elementos desse grupo harmônico estão Octavia Spencer (vencedora do Oscar por Histórias Cruzadas), Jamie Bell (o Coisa do recente Quarteto Fantástico), John Hurt (de Imortais), Ed Harris (de Medo da Verdade) e Kang-ho Song (colaborador do diretor em O Hospedeiro). Ainda assim, é preciso reconhecer os méritos de dois atores em especial. O primeiro deles é a camaleônica Tilda Swinton, sempre um diferencial em qualquer produção. A atriz vive aqui a asquerosa Mason, que leva as ordens de Wilford aos passageiros do último vagão. O outro elemento interessante do elenco é o ator Chris Evans, popularizado como o Capitão América dos filmes da Marvel, o ator domina dramaticamente dois momentos cruciais da história ao final do longa.
Amplo em sua simbologia sem ser pretensioso, Expresso do Amanhã é um filme acessível e que sustenta a sua proposta do início ao fim sem as usuais concessões dramáticas que alguns filmes de estúdio costumam fazer. O longa acaba sendo interessante por contemplar profundidades de leituras diversas: pode ser encarado como uma ficção-científica pós-apocalíptica de primeira linha, como também um aplicado e inteligente "tratado sociológico cinematográfico", ou ainda como uma combinação dos dois, o que o torna ainda mais interessante. Expresso do Amanhã tem muita violência gráfica, mas ela acaba não sendo mais impactante para o espectador do que a diversão que ele proporciona e do que a mensagem que Joon-ho Bong quer passar sobre a humanidade e sua urgente porém corrosiva necessidade de se organizar coletivamente para sobreviver.
Snowpiercer, 2014. Dir.: Joon-ho Bong. Roteiro: Joon-ho Bong, Kelly Masterson, Elenco: Chris Evans, Tilda Swinton, Kang-ho Song, Jamie Bell, John Hurt, Ed Harris, Octavia Spencer, Ah-sung Ko, Alisson Pill, Marcanthonee Reis, Ewen Bremner. Playarte, 126 min.
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