Enquanto todos os blogs especializados na cobertura do Oscar em 2014 polarizaram suas atenções entre as performances de Julianne Moore em Para Sempre Alice e de Reese Whiterspoon em Livre, uma atriz correu por fora e por falta de um fôlego maior na campanha sequer chegou a ser indicada ao prêmio. Estou falando de Gugu Mbatha-Raw, que monopolizou as atenções por duas performances muito elogiadas, uma no filme de época Belle e outra no drama musical Nos Bastidores da Fama.
Aos 31 anos e com pouquíssima experiência no cinema, Mbatha-Raw foi a revelação do ano de 2014 para muita gente que faz a cobertura de cinema nos Estados Unidos com duas complexas protagonistas. Em Belle, Mbatha-Raw interpretou Dido Elizabeth Belle, filha de uma escrava e de um capitão branco que enfrentou o preconceito na Inglaterra do século XVIII. Já Nos Bastidores da Fama traz a atriz como uma pop star em crise de identidade que redescobre sua própria vocação quando se apaixona por um policial que a salva de um suicídio. Por interpretar dois papéis tão fortes, em filmes de diretoras negras que põem em debate as raízes do preconceito (Belle) e as ações de "cosmetização" e hipersexualização promovidas pela indústria da música, Mbatha-Raw e suas personagens acabaram tornando-se um símbolo da causa negra e feminina no ano passado.
É uma pena que o primeiro contato do público brasileiro com Gugu Mbatha-Raw tenha sido com o fiasco dos irmãos Wachowski O Destino de Júpiter. Tanto Belle quanto Nos Bastidores da Fama não foram lançados no cinema por aqui, saindo diretamente em DVD e Blu-Ray, mas vale a pena ir atrás dos dois títulos e conhecer esta maravilha de atriz!
Belle
Parece incrível, mas Dido Elizabeth Belle de fato existiu na Inglaterra do século XVIII e foi criada como uma mulher branca do seu tempo, com todas as ressalvas que possamos fazer sobre esta afirmação. Belle conta a história de uma jovem nascida escrava mas logo liberta por seu pai e sua família de aristocratas brancos. Apesar da resistência inicial do seus tios, Belle quebra todo o "gelo" e é amada por todos, tal qual a sua prima Elizabeth. Quando atinge uma certa idade, Dido Belle descobre que o seu pai lhe deixou um grande volume patrimonial como herança. É justamente nessa etapa da sua vida, antes Belle vivia reclusa e protegida de qualquer discriminação, que a jovem é apresentada à sociedade e se depara com o seu lado mais cruel. Dido Elizabeth Belle toma ciência da sua própria condição a partir do momento em que percebe que mesmo com um dote maior que o de Elizabeth poucos pretendentes querem a sua mão. Dido começa a sentir então os sinais do preconceito não só naqueles que não a conheciam e ficam escandalizados por ela circular entre os salões como a aristocrata que é, mas também da sua própria família, cuja discriminação da jovem no ambiente doméstico foi durante anos velada.
Belle poderia ser uma típica história de Jane Austen com direito até a final romântico e todos aqueles conchavos e arranjos matrimoniais. A diretora Amma Asante parece ter consciência desse potencial da história de Dido Belle e a conduz nesse tom "austeniano". O que Asante faz é quebrar os protocolos que tornariam esse filme mais um romance de época britânico com a força simbólica que a sua protagonista tem através da sua posição nessa história e a reverberação política e social que isso causa. Nesse sentido, Belle é um filme consciente do tom grandiloquente e açucarado da sua narrativa e o utiliza propositadamente, sendo um longa muito mais inteligente do que parece. Há também muita sensibilidade na condução de Asante, que conta com um elenco formidável formado por Tom Wilkinson (ótimo como o juiz e tio de Belle), Emily Watson, Miranda Richardson, Tom Felton, Sarah Gadon, Matthew Goode, Sam Reid e, claro, Gugu Mbatha-Raw, que entrega uma performance estupenda. Mbatha-Raw é expressiva e conduz com muita sensibilidade o despertar de Dido Belle para a compreensão da sua própria posição social.
Nos Bastidores da Fama
Em Nos Bastidores da Fama (o título original do filme é Beyond the Lights), Gugu Mbatha-Raw interpreta Noni, uma estrela pop nos moldes de Beyoncé Knowles ou Rihanna. Desde pequena Noni era levada por sua mãe para mostrar a sua voz em concursos de talento infantil, mas acabava preterida por garotas loirinhas que mostravam os seus dotes rebolativos para os jurados. Quando cresce, Noni alcança o sucesso mundial através de uma imagem hipersexualizada, um repertório provocante e escândalos midiáticos com seus namorados rappers. Após uma entrega de prêmios, em um ato desesperado, a jovem estrela resolve se suicidar, mas é impedida por um homem por quem acaba se apaixonando.
Com ecos de O Guarda - Costas, filme com Kevin Costner e Whitney Houston, Nos Bastidores da Fama é um longa que à primeira vista parece banal. Aos poucos, ele vai apresentando suas camadas de leitura sobre o mundo da indústria fonográfica ao espectador e sua existência passa a fazer mais sentido. O longa de Gina Prince-Bythewood mostra através da história de Noni como meninas sensíveis e talentosas se metamorfoseiam em produtos midiáticos totalmente diferentes da sua essência artística. A história soa por vezes clichê ou superficial, mas tem uma base crítica que tem o seu fundo de verdade. Entre altos e baixos de Nos Bastidores da Fama, o maior problema do filme é fazer a sua história engatar e se apresentar de fato ao espectador, isso leva tempo.
Apesar da irregularidade do filme e do seu lugar-comum inicial, um dos elementos responsáveis por manter o público atento ao desenrolar dos acontecimentos é Gugu Mbatha-Raw. Como Noni, a atriz alterna entre a natureza agressiva da personagem que a própria cantora interpreta para a mídia e a fragilidade de uma jovem insatisfeita com os rumos que o seu sonho tomou. Em uma das cenas mais comoventes do filme, Mbatha-Raw interpreta "Black Bird" de Nina Simone, e não interessa se a versão é cantada pela própria atriz ou não (vide Marion Cotillard em Piaf - Um Hino ao Amor), o que importa é que na cena Gugu sintetiza o drama da sua personagem em poucos minutos. O filme ainda conta com uma ótima interpretação de Minnie Driver, excelente no papel da mãe de Noni, e Danny Glover.
COMENTÁRIOS