O Homem Duplicado se junta a Inside Llewyn Davis - Balada de um Homem Comum e Sob a Pele como
uma das obras cinematográficas mais instigantes do ano. Com sua já
atestada preferência por tramas que investigam um lado não tão agradável
da natureza humana, o cineasta canadense Dennis Villeneuve radicaliza
de vez em sua abordagem nesse suspense que flerta com o cinema onírico,
introspectivo, lisérgico e sombrio de David Lynch (Cidade dos Sonhos), mas também com a maneira como Darren Aronofsky (Cisne Negro) realiza
a simbiose entre a psicologia do seu protagonista e a forma do filme. Baseado no romance de José Saramago, O Homem Duplicado não
só explora a profunda e conturbada psicologia do seu personagem central
como a transforma em espaço e engrenagem da própria narrativa. Não
seria o tipo de narrativa que recomendaríamos a todos porque é difícil
mesmo para o público se acostumar e entender que abordagens radicalmente
opostas aos padrões de narração cinematográfica e que exigem uma
constante decifração, já que tudo que está na tela não pode ser
interpretado em seu sentido literal, são positivas e trazem um
aperfeiçoamento da própria gramática cinematográfica. É um estranhamento
comum, do qual outras obras foram "vítimas". Não à toa, lá fora, O Homem Duplicado teve uma recepção tão amarga.
O filme tem como ponto de partida a vida do professor universitário Adam
Bell (os nomes foram adaptados para o filme e apesar da alcunha
Tertuliano Máximo Afonso ser funcional no livro, aqui não faz tanta
falta assim) que descobre em um filme um ator idêntico a ele. Bell,
entediado com sua própria vida, começa a procurar esse homem para tentar
saber a razão de tamanha semelhança. Logo, as vidas dos dois
personagens passam a se entrelaçar e suas decisões começam a interferir
nas suas rotinas e afetar os relacionamentos amorosos de ambos. No mais,
desculpem amigos, mas fazer uma sinopse mais esmiuçada do que isso
seria sacrificar a experiência de todos de desvendar o que existe por
trás desses personagens pouco a pouco, tal qual deseja Denis Villeneuve.
Já que tocamos no nome do diretor de O Homem Duplicado é
preciso enaltecer a sua coragem e o seu esforço de apropriar-se sem
violentar a ideia central da obra de José Saramago. Como poucos
cineastas na sua mesma posição, Villeneuve não se intimidou com a carga
de cobrança externa e interna por estar adaptando o livro de um autor
cultuado como Saramago e imprimiu vida própria ao seu filme, mantendo os
propósitos da obra original, mas fazendo os cortes e as adaptações
necessárias, claro que com a ajuda do roteirista Javier Gullón. O Homem Duplicado de
Villeneuve tem muita personalidade enquanto obra audiovisual, tendo
como ponto de sustentação recursos como a fotografia que abusa do tom
sépia, os ambientes impessoais, uma montagem que obedece aos comandos do
diretor e acompanha o desenvolvimento dos seus personagens, todos em
perfeita comunhão para criar uma atmosfera que intriga o espectador do
início ao fim. O elenco é outra peça fundamental na engrenagem da obra. E
se alguém não tinha firmeza em Jake Gylenhaal como ator, é melhor rever
os conceitos. Interpretando duas personalidades completamente opostas
que colidem no terceiro ato do filme, Gylenhaal dá conta do recado de
maneira muito eficiente. O ator também está cercado por ótimas
companhias, já que Mélanie Laurent (a namorada de Adam) e,
principalmente, Sarah Gadon (a esposa do ator) dão conta do recado e
funcionam como peças fundamentais para o desfecho do mistério em torno
dos sósias.
Preferia não adentrar nas interpretações da obra pois,
como já disse, estragaria a experiência do leitor/espectador. Como esse
exercício de falar sobre um filme sem revelá-lo é extremamente
complicado e posso acabar soltando algo, peço (e espero que seja ouvido)
que pare de ler esse texto a partir de agora, caso não tenham visto o filme.
O que pode ser dito é que Villeneuve esmiúça o elo entre Adam e seu
sósia de maneira brilhante para chegarmos a uma conclusão satisfatória
que nos obriga a fazer um retrospecto das pistas deixadas pelo filme
desde o início. Com o claro intuito de falar sobre esse compreensível e
arriscado desejo que temos de estar na pele de outra pessoa e de dar
vazão a nossas mais recônditas fantasias abafadas por nossa vida
corrente, o realizador traz um exercício de reflexão louvável se
voltarmos e pararmos para pensar um pouco mais em toda a "engenharia"
que ele construiu até chegar ao seu desfecho. Esse exercício de
assimilar a obra com o devido tempo, sem a necessidade de conclusões
imediatas que são tão correntes nesse consumo instantâneo que é feito
com cada vez mais frequência no que concerne ao audiovisual, é o que
torna O Homem Duplicado uma preciosidade no meio de tantos
trabalhos "mastigados" e com conclusões e interpretações prontas. Aqui, o
público é parte da própria obra e isso é fascinante.
O Homem Duplicado é daqueles tipos de filme que chega a ser
arriscado traçar um "diagnóstico" sobre ele no seu lançamento pois corre
o risco de cometermos uma leviandade. É o tipo de obra que merece ser
vista, revista, dissecada e estudada em suas camadas. Não querendo ser
definitivo nessas últimas linhas sobre o filme, recomendo apenas que se
deem a oportunidade de conferir esse filme desafiador e por vezes
desconfortante em sua linguagem. É incomum - não digo original porque
Denis Villeneuve tem suas fontes -, mas é com esse tipo de empreitada
que o cinema avança e que a gente aprende a refinar e ser mais exigente
como espectador, dialogar com a obra e não encerrar abruptamente nossa
relação com ela com o subir dos créditos. Afinal, como sugere a própria
epígrafe do longa, "Caos é a ordem ainda indecifrada". Portanto,
tentemos decifrar O Homem Duplicado. É recompensador.
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