O SeaWorld certamente é um dos destinos preferidos das famílias que procuram os parques da Flórida como alternativa de entretenimento. O principal atrativo? As peripécias das Orcas, que, orientadas por seus treinadores, fazem de um tudo no aquário central da atração: acrobacias, mandam beijos e saudam a plateia com suas nadadeiras ou com os seus famosos e relativamente desejados jatos d’água. Por mais de uma década, não só a SeaWorld como toda uma cadeia de parques aquáticos têm como pincipal atração esses animais extremamente inteligentes e simpáticos. Expostas aos caprichos humanos como se fossem cúmplices de toda essa engrenagem e reagissem bem à operacionalidade da vida em cativeiro, as Orcas acabaram sendo protagonistas de tragédias paralelas que estereotiparam um outro lado da natureza desse animal. Há inúmeros relatos registrados por departamentos de investigação dos EUA envolvendo ataques inesperados desses animais aos seus próprios treinadores, muitos deles durante as próprias apresentações. O que leva esses dóceis e amorosos mamíferos a agirem de maneira surpreendentemente violenta é o que o documentário Blackfish – Fúria Animal , que chega diretamente em DVD pela Universal no Brasil, pretende desvendar. Uma causa que mobiliza defensores dos animais, as cortes de justiça norte-americanas e pesquisadores de todo o mundo.
O ponto de partida de Blackfish é a
morte da treinadora norte-americana Dawn Brancheau durante a
apresentação de uma das principais atrações do SeaWorld, a Orca
macho Tilikum. No auge do show, Tilikum, que já apresentava sinais de
irritação e desobediência com a treinadora, arrasta Dawn para o fundo do
aquário e chacoalha a treinadora com muita força pela boca. Tudo isso
na frente da habitual plateia lotada do parquet temático. A partir desse
caso, televisionado mundialmente, o documentário traça a trajetória de
Tilikum até o incidente e descobre que Dawn não foi a primeira “vítima”
da Orca. Antes dela, outras duas pessoas foram a óbito pela “fúria” de
Tilikum. Além desse caso outros relatos semelhantes, envolvendo Orcas em
condições de vida similares são contados. Um deles, o da Orca Kasatka
que em 2006 teve a mesma reação de Tilikum com Dawn durante a
apresentação do treinador Ken Peters. Diferente de Brancheau, Peters
conseguiu contornar a situação com muita habilidade (veja o video
abaixo), o que não pode ser levantado como indício de que a culpa de
ocorridos como os de Tilikum é exclusiva dos treinadores.
A origem dos problemas é descoberta pelo público através do percurso de
Tilikum até o SeaWorld. Como boa parte dos animais que se tornam
atrações desses parques temáticos, Tilikum foi capturado ainda filhote
sendo abruptamente afastado do convívio de sua mãe, algo marcante para
animais de intenso convívio comunitário com suas famílias como as Orcas.
Tilikum é um macho dócil e mantido com grande interesse pelo parque
pois além da facilidade com que é treinado é um grande reprodutor.
Quando adulto, a Orca ganha proporções inimagináveis, tornando-se
um gigante “bobalhão” em meio às demais fêmeas que convivem com ele em
seu aquário. As relações entre os treinadores e Tilikum começam a
despertar reações nas Orcas fêmeas que, ocasionalmente, são punidas com
a falta de “agrados” (petiscos, peixes) por mostrarem-se indóceis aos
treinamentos. As companheiras de aquário passam a descontar toda a sua
raiva em Tilikum e a noite agridem o companheiro com mordidas e
pancadas. Todo esse convívio complicado com animais de origens
diferentes (é o mesmo que colocar indivíduos de nacionalidades
diferentes para conviverem enclausurados) e o isolamento que não permite
extravasar a ira de uma espécie bastante emotive faz com que Orcas como
Tilikum passem a atacar subitamente seres humanos com quem tinham um
convívio afetuoso.
Na verdade, Tilikum é só a ponta de um
imenso Iceberg. Através de depoimentos de ex-treinadores do SeaWorld e
de outros parques aquáticos, neurocientistas, promotores de justiça, o
publico começa a traçar toda a cadeia complexa de fatos que tornam
Tilikum e todas as Orcas protagonistas de tragédias como as de Dawn
Brancheau mais vítimas do que assassinas ensandecidas tomadas pela fúria
incontrolável. Encontramos na complexidade do sistema afetivo do animal
um ponto fundamental para compreender as reverberações que a vida fora
do seu habitat e limitada em possibilidades de dar vazão a agressividade
e ao estresse. Na verdade, Blackfish, que dá grande destaque a
voz dos defensores de uma causa, é uma crítica aberta ao que existe por
trás da perpetuação da prática da criação de Orcas e adestramento em
cativeiro, trazendo, além da radiografia da situação desses animais, uma
investigação bem articulada a respeito das ações dos conglomerados de
entretenimento que abafam as dezenas de casos de morte de treinadores,
colocados pela fita como indivíduos engolidos pelo próprio sistema e
pelo amor que sentem àqueles animais e a sua profissão. Entre os mitos
despejados por essas instituições estão o da barbatana curva (indício
evidente do abatimento do animal pela vida em cativeiro), da imprudência
de treinadores (uma alegação da qual Brancheau foi vítima) e da baixa
expectativa de vida das Orcas. Tudo para camuflar o entorno opressor e
perigoso que envolve a criação e o treinamento desses animais.
Guardadas as proporções que toma em função da sua necessária parcialidade, Blackfish presta
um serviço fundamental para mostrar como o homem subalterna e ignora
toda forma de vida, coisificando-a para atender a anseios mercantis. A
resposta, como acontece com todo dano causado a natureza, vem sempre da
pior forma, evidenciando os caminhos tortos da nossa relação com as
outras formas de vida. Não aprendemos com a amabilidade e doçura de
espécies como as Orcas. O profundo respeito que a documentarista
Gabriela Cowperthwaite mostra pelas Orcas é o guia de todo esse relato
parcial sim, mas contundente e relevante, um ponto de vista que tem a
urgência de ser ouvido e visto, retirando a ingrate alcunha de “baleia
assassina” e desmascarando os verdadeiros criminosos de toda essa rede
de acontecimentos lamentáveis, nós que endossamos práticas bárbaras
contra animais por gerações e gerações.
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