Desde o lançamento de O Vencedor em 2010, David
O.Russell, realizador conhecido no circuito alternativo por Procurando
Encrenca ,Três Reis e Huckabees - A Vida é uma Comédia, vive uma nova fase da sua carreira em que passou
a flertar com o Oscar, estando junto com o produtor Harvey Weinstein a frente
de produções que, para o bem ou para o mal, traziam elementos que pareciam
seduzir os votantes da Academia com estratégias "manjadas", como o
melodrama, as mensagens de superação e o elenco com grandes e jovens estrelas
em ótimas atuações. Assim era O Lado bom
da Vida. Não que Trapaça abra mão dessas "armas", mas ao
menos é um filme que desde o início se apresenta como é, sem subterfúgios, sem
a "conversa fiada" da "comédia romântica alternativa" que O Lado bom da Vida espertamente defendia.
Trapaça
tem como protagonista Irving Rosenfeld (Christian Bale), um golpista que
trabalha junto com sua sócia e amante, a jovem Sydney Prosser (Amy Adams). Os
dois são pegos por Richie DeMaso (Bradley Cooper), agente do FBI, que os obriga
a colaborar em um esquema de investigação da máfia para promovê-lo em seu
departamento policial. O grupo acaba envolvendo na armação o honesto político
Carmine Polito (Jeremy Renner) e a esposa de Irving, Rosalyn Rosenfeld
(Jennifer Lawrence), uma instável dona de casa que pode colocar todo o esquema
deles a perder.
Assim, Trapaça
é um sexy e divertido filme de gênero - flerta com o que se convenciona chamar
filme de roubo ou trapaça -, um razzle dazzle na temporada de premiações, puro show, entretenimento escancarado, ambientado
na excitante década de 1970, com um elenco afiado e se divertindo muito em seus
respectivos papéis. No entanto, o que faz a gente respirar aliviado em Trapaça
e considerá-lo como um dos mais interessantes filmes da recente fase de
David O.Russell é que este é o longa que mais dialoga com algumas das
marcas do diretor nos seus primórdios, um cinema que tem em sua montagem e no
seu mise en scène características bem peculiares.
Já que mencionamos o mise em scène apresentado
em Trapaça como um típico representante das marcas do seu diretor, o excelente
trabalho que O.Russell realiza com seu elenco não pode deixar de ser comentado.
Christian Bale, Bradley Cooper, Jeremy Renner e Robert DeNiro, este último em
participação impagável, estão excelentes em suas funções, mas o destaque de Trapaça
é mesmo a sua dupla feminina: Amy Adams e Jennifer Lawrence. Amy Adams é
uma atriz de sutilezas e não de grandes caracterizações, talvez por isso
suas interpretações, sempre lembradas em prêmios, sejam tão subestimadas. Aqui,
Adams administra com destreza o papel da típica trapaceira, personagem com
múltiplas facetas e "personalidades" na tela. Alma gêmea de Irving,
papel de Christian Bale, Sydney está tão envolvida no jogo de gato e rato que a
simulação de sentimentos já está impregnada em sua própria existência. Não que
Sydney não se preocupe com os outros ou deixe de nutrir sentimentos verdadeiros
por eles (ela é de fato apaixonada pelo Irving e sente pena por não atender às
expectativas de Richie), mas sua sobrevivência está acima de todos eles e mesmo
que doa na sua própria carne enganar Richie, por exemplo, ela vai até o
fim e sem remorso com seus planos. Adams consegue
definir muito bem os propósitos dessa personagem: a sua
inteligência, o seu poder de persuasão, o seu sex appeal,
enfim, as suas inúmeras demandas. A personagem da Adams talvez
seja a que carrega consigo todo o propósito do filme desde o início,
o de contar uma história, ainda que torta, sobre sobreviventes. Já Jennifer
Lawrence rouba todos os momentos em que surge em cena como a descontrolada
Rosalyn, cuja escassa vida social e a crescente desatenção do marido a
tornam uma verdadeira bomba relógio prestes a destruir os planos e as certezas
de todos os personagens. Lawrence conduz Rosalyn com muito humor, mas sem
perder a sua linha dramática e os seus conflitos, entre eles o receio de perder
a "estabilidade" que a vida de casada representa para ela.
Em uma determinada cena de Trapaça, Richie
DeMaso, personagem de Bradley Cooper, conta para Edith Greensly, brevemente, a
caminho de uma boate, alguns dados a respeito da sua vida infeliz. Por um
breve instante, ela se enternece pelo parceiro e sente que ele está em situação
semelhante a sua, dois miseráveis tentando sobreviver e se dar bem na vida. No
entanto, em nome dessa mesma necessidade de sobreviver, Edith sai desse estado
de compaixão e volta a si, lembra que é na verdade Sydney Prosser (Amy Adams) e
que, infelizmente, os seus interesses devem prevalecer sobre os interesses de
Richie. Essa passagem não só define o instinto dos principais personagens de Trapaça
como dá tônus ao tema central dessa deliciosa fita que retoma um subgênero
que o cinema norte-americano ama por excelência, os filmes sobre
vigaristas. Assim, o novo longa de David. O.Russell é uma ingloriosa
história sobre sobrevivência, mas antes de mais nada um filme que não tem medo
de assumir a sua veia pop sem
estabelecer compromisso com qualquer outro propósito. Nas suas linhas gerais, Trapaça
é um filme de gênero agradável que se assume que seduz e entretém as
plateias com seus jovens, bonitos e talentosos atores, sem ofender a
inteligência do espectador. É pura Hollywood
old school!
P.S.: Após analisar Trapaça, gostaria de
fazer uma digressão sobre o filme e sobre o seu atual contexto de
exibição. Determinadas situações que surgem a partir das indicações ao Oscar
são curiosas. Os filmes indicados ao prêmio principal, sobretudo se são mencionados
em muitas categorias, acabam sendo avaliados nas críticas não por seus méritos
enquanto obras ou suas relações com o histórico dos seus cineastas, mas pelo
merecimento ou não de estarem na lista de melhores filmes do ano. É como se
críticos e cinéfilos não conseguissem avaliar esses dois aspectos da obra em
suas duas faces, o que o filme em si representa enquanto proposta e resultado
e, em outro momento, a sua presença na edição do prêmio Oscar. Tratam-se de
dois tipos de avaliações diferentes. No caso de Trapaça é como se o fato
de ter recebido 10 indicações ao Oscar já trouxesse para o longa um argumento
indelével contra ele em comparação com os outros indicados. É como se a equação
entre proposta e resultado promovida pelo diretor David O. Russell pouco
importasse, o que interessa é avaliar o seu filme em comparação com Gravidade,
12 Anos de Escravidão ou qualquer outro longa da lista desse ano.
Independente do público ter visto ou não os seus concorrentes, o que interessa
é essa marca das 10 indicações em seu currículo. Claro que uma crítica não se atém apenas a elementos internos da própria obra, mas também aos seus elementos externos (e a filmografia do realizador, os gostos de cada crítico e vários outros cumprem bem esse papel), mas o que se percebe é que há, com muita frequência, uma confusão entre a
avaliação do filme com uma análise sobre a premiação em si.
Não sei se estou entrando em contradição com essa linha de raciocínio, mas entendam, não desejo fazer dessas observações um repúdio aberto ao
Oscar, até porque seria incoerente da minha parte já que sempre considerei a
temporada de prêmios uma das mais divertidas do ano para cinéfilos (sim, porque
tenho em mente que nem sempre, repito, nem sempre, o Oscar é um prêmio para a
qualidade artística e isso não depõe contra ele, o Oscar é uma espécie de jogo
no qual todos especulam sobre os gostos médios de um grupo que vota em filmes
por motivos diversos, entre eles, a qualidade artística, mas não só ela). O que
quero dizer é que quando um filme atinge uma combinação em nível elevado de
popularidade e reconhecimento em prêmios, logo surgem os "espertos"
detratores para dizer: "Não entendo porque estão falando tanto desse
filme. O filme não é tão bom assim...". De certa maneira, Trapaça tem
sido "vítima" desse processo não só por estar recebendo prêmios e
roubando um certo favoritismo de 12 Anos de Escravidão e Gravidade,
mas também por ser o mais popular e divertido longa da temporada. E que mal há
nisso? A menos que esse grupo dê argumentos consistentes e sólidos para irem
contra Trapaça (tirando a sombra das premiações do seu próprio
julgamento) não há motivo para repudiar um filme que te entretém de maneira
deliciosa por cerca de duas horas sem ofender a sua condição de ser pensante.
Frisando, a menos que existam argumentos consistentes, não há motivo para se
detestar um filme tão agradável quanto Trapaça. Caso tenha argumentos
consistentes, desconsiderem essa breve análise e vamos ao que interessa, o
filme.
American Hustle, 2013. Dir.: David O. Russell. Roteiro: David O. Russell e Eric Warren Singer. Elenco: Christian Bale, Amy Adams, Bradley Cooper, Jennifer Lawrence, Jeremy Renner, Michael Peña, Louis C.K., Alessandro Nivola, Elisabeth Rohm. 138 min. Sony.
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